segunda-feira, 30 de junho de 2025

Liberté, égalité et fraternité… com exceções de costume

Liberté, Égalité, Fraternité… com exceções de costume

Nas fachadas dos prédios públicos, ainda se lê em letras gastas: Liberté, Égalité, Fraternité. Três palavras que foram grito, sonho e sentença. Estão por toda parte — entalhadas em pedra, grafitadas em muros, ecoadas em discursos. Estão até nos manuais de história e nas camisetas vendidas aos turistas, como se fossem marca registrada de um país que inventou a revolução e, de vez em quando, lembra disso.

Um belo país, sem dúvida. Terra de Rousseau, que a França chama de seu, mesmo tendo nascido em Genebra — como se as ideias tivessem passaporte, e que pensou a liberdade como quem a pressente nas matas da infância; de Montesquieu, que soube separar os poderes como quem conhece os perigos do acúmulo; de Voltaire, que fez da ironia uma arma de resistência. Terra de Condorcet, que acreditava na razão como remédio; de Sieyès, que soube escutar o Terceiro Estado antes que este explodisse; de Lafayette, que atravessou oceanos por ideais; de Cassin, que construiu pontes jurídicas para o pós-guerra; de Veil, que escreveu dignidade no corpo das mulheres; de Badinter, que defendeu o direito de não matar nem com a toga.

E também de Olympe de Gouges, que teve a ousadia de escrever que a mulher nasce livre e igual ao homem — e pagou caro por isso. De Victor Hugo, que deu voz aos miseráveis antes que o mundo pensasse neles. De Sartre, que nos obrigou a encarar o espelho. De Missak e Mélinée Manouchian, que lutaram com coragem de quem ama uma pátria que ainda os olhava com desconfiança.

Um país de gigantes, sem ironia. Sem aspas. Com respeito.

Mas a França também é feita de outras histórias, essas que não estampam os manuais. Zineb Redouane morreu ao fechar a janela, Steve Caniço caiu no rio e o silêncio das autoridades foi mais fundo que a água. Nahel levou um tiro em plena luz do dia, Traoré morreu sob custódia, Fraisse tombou numa manifestação — gente comum, cidadãos, lembranças incômodas de que a fraternidade, às vezes, tem prazo de validade.

Há também Koumé, El-Yamni, Jean‑Paul Benjamin, Babacar Gueye e tantos outros. Todos eles, nomes riscados das narrativas oficiais, mas gravados nas paredes, nas marchas, nas memórias que não se deixam enterrar.

E é nesse ponto que algo range.

Como disse um poeta baiano: “alguma coisa está fora da ordem.” E talvez esteja mesmo. Ou talvez a ordem, com letra maiúscula, funcione exatamente assim: como um filtro, um funil, um fichário. Onde a liberdade depende da sua certidão de nascimento, onde a igualdade se mede pelo CEP, onde a fraternidade não se estende além da fronteira da aparência.

Porque é também terra dos que batem no peito para se dizer “de souche” — como se a origem valesse mais do que o destino, como se houvesse pedigree para ser cidadão. Franceses que se dizem guardiões da identidade e, na prática, são apenas guardas de fronteira do ódio. Os Darmanins, com seu autoritarismo elegante; os Le Pens, herdeiros do rancor como herança de família; os Ciottis, Zemmours, Retailleaus, que falam como se tivessem inventado a França e agora a quisessem para si, cercada, policiada, vigiada.

Falam em valores, mas destilam medo. Clamam por civilização, mas espalham barbárie. Dizem proteger a República, mas a desfiguram, como quem zela tanto por um retrato que acaba apagando o rosto.

E mesmo assim, vive la France.

Vive porque ainda pulsa nos becos, nas marchas, nas escolas públicas onde se ensina a pensar. Vive nos jovens que rimam resistência, nas bibliotecas de bairro, nas mãos que se estendem. Vive na coragem dos que não têm sobrenome de rua, mas carregam nas veias o sangue da revolução.

Liberdade? Ainda se deseja. Igualdade? Ainda se exige. Fraternidade? Ainda se constrói, um gesto de cada vez.

E se há quem queira calar os nomes, apagar os rostos, negar os corpos, sempre haverá quem os escreva de novo. No asfalto. Nos muros. Na história.

Porque, apesar dos vendavais, dos retrocessos e dos execráveis de ocasião —
vive la France!

domingo, 29 de junho de 2025

O espelho de Amira

O Espelho de Amira

Amira, 22 anos. Não cursou universidade, nem técnico, nem nada com “formação” no nome. Não por falta de neurônio – quem olha praqueles olhos nota que ali há coisa guardada –, mas talvez por excesso de ausência. Ausência de incentivo, de aplauso, de fé. Falta de empurrão familiar. Ou, como diria a tia Zohra, “é que estudar não dá dote.”

E assim, nosso enredo começa entre os corredores do Carrefour da rua des Citeaux, quase esquina com o Faubourg Saint-Antoine, onde os preços caem mas os sonhos ficam na prateleira de cima. Difícil de alcançar sem escada. E escada, meu caro, nem sempre se vende em supermercado.

Amira acorda cedo, menos às terças (dia sagrado de folga, quase um ramadã pessoal). Toma sua ducha, se veste como quem prepara oferenda: roupa preta, mangas compridas, a despeito do termômetro gritando “canicule!”. Come sua fatia de kesra com jben – pão e queijo, poesia em estado sólido – e bebe o chá de menta que parece mais ritual que desjejum.

E então: véu. Amira cobre a cabeça com cuidado. Como quem sabe que cada dobra carrega o peso das expectativas de séculos, e talvez até de sogras.

Vai até a Gare de Bondy. Anda com a firmeza de quem caminha sobre um destino previamente escrito – caligrafado, talvez – por algum ancião rabugento. No metrô, três estações antes do Carrefour, ela vira heroína de sua própria novela: saca da bolsa (Louis Vuitton made in Guangzhou) um espelhinho, um batom Sephora vermelho, e o delineador afiado como crítica social.

A maquiagem é feita com o esmero de um pintor flamengo: traços precisos, respiração contida. Quem vê, jura que ela vai para um encontro com o destino. Mas é só o turno das 9h às 17h no caixa 4.

Ali, ela brilha. Sorri. Elogia cortes de cabelo, pergunta pela família, pisca como quem entende mais do que diz. Suas mãos são um espetáculo à parte: unhas vermelhas como cerejas maduras, dançando sobre notas sujas de euro como se fossem partituras de um flamenco reprimido. Uma cena almodovariana, com certeza. Só faltava o Antonio Banderas no açougue e a Penélope Cruz em promoção no hortifrúti.

Quando o expediente termina, Amira volta para o metrô. Reencarna. Lenço umedecido na mão, remove a maquiagem com a mesma delicadeza com que antes se pintara. Deusa de ida, sombra de volta. Desfaz os contornos, limpa o vermelho dos lábios, apaga o personagem.

Talvez procure um marido. Um da lista de sonhos dos pais: homem de uns 50 anos, careca não por opção, com um harém, devoto do Alcorão e, eventualmente, de tapas não muito simbólicos.

Mas há ironia nesse roteiro. Maomé não contou com a influência tardia da TV brasileira. Crescidos entre chacretes e paquitas, homens ocidentais, “educados” pela trupe do Bob Marinho nos anos 80, e que, mais tarde se bronzearam nas praias da Costa Azul, e na costa catalã, olham para Amira com fascínio. Aquela que se cobre inteira, de véu e reserva, deixa mais à mostra do que muita minissaia na grama do Parc Floral. Para olhos domesticados pela nudez cotidiana, o mistério virou fetiche.

E assim, enquanto ela esconde, eles veem. Enquanto ela se protege, eles desejam. E a cada batom passado ou retirado, a cada sorriso no caixa, a cada elogio ensaiado, Amira escreve – sem saber – uma crônica entre véus e vitrines, entre tradição e rebeldia.

Não quer ser mártir, nem mártir de supermercado. Só talvez, se a poesia permitir, ser vista. Com ou sem delineador.

sábado, 28 de junho de 2025

Porque não?

Porque não?

Lá onde nasci e cresci — que é como dizemos quando queremos dar um tom épico a uma infância de chinelo Havaiana e picolé Kibom —, me deliciei com paisagens de cartão-postal, embora os postais já estivessem em extinção e ninguém mais soubesse o que fazer com eles além de apoiar copo suado. Eram paisagens de cachoeiras pulando das pedras como crianças sapecas, quebradas mil (e um ou outro tornozelo também), Cipó em flor, Lavras Novas com cheiro de fogão a lenha e saudade, Moeda brilhando sob o sol como se fosse feita dela, Milho Verde de nome poético e chão poeirento.

E sem esquecer da cidade natal, Del Rey curral, onde o pôr do sol parecia fazer questão de se exibir, se espichando até a Pampulha, como se ela fosse mar, e não lagoa… E porque não o bar do Cabral, esse templo democrático onde cerveja e filosofia dividem a mesma mesa e ninguém se importa com a ortografia?

A alguns quilômetros dali — “logo ali”, como gostamos de mentir com carinho —, havia praias que aprendiam com o mar a arte de seduzir. Martins de Sá e sua areia que gruda na alma, Cumuru que é quase segredo e, porque não, o Arpoador, onde o sol se deita com preguiça carioca?

Tudo isso pra dizer que, ainda que tenha me sentido rei naquele pequeno reino de belezas, me exilei voluntariamente. Vim parar aqui, onde o francês é o latim com enfeite e o pão tem nome e sobrenome. E não posso reclamar: a floresta de Fontainebleau, que me recebeu com o silêncio que só as árvores velhas sabem fazer. Giverny, com seus jardins tão bem cuidados que até as abelhas respeitam, parece ter sido arrumada por um impressionista com TOC.

O vale de Chevreuse e a floresta de Rambouillet que ensinam que verde também pode ser melancólico. E os castelinhos, tão singelos quanto é possível ser com torres e brasões… 
E na cidade onde moro, Montmartre — que ainda guarda um pouco de sua alma boêmia entre os turistas —, vejo o pôr do sol à beira do rio como quem assiste a um filme que já viu, mas nunca cansa. Os campos de Marte se estendem como um tapete para o céu cair em cima. E porque não, o Baron Rouge, onde o vinho escorre leve e as ostras escorregam goela abaixo?

Já mais longe, como dizemos por aqui quando a preguiça é menor que a vontade de ir, tem o Vale do Loire, com seus castelos que fingem modéstia. Etretat e seus penhascos que desafiam o mar a não bater neles. Honfleur, onde o tempo parece ter esquecido de passar. E lá pelas bandas do sul, a Costa Azul, que é azul mesmo, e o Verdon, com suas profundas gargantas que sussurram histórias de pedra e água. E os Alpes, que só de olhar já dão falta de ar — beleza também é altitude.

Sou um cara ordinário, sim, desses que perdem chave, esquecem senha, tropeçam na própria alma. Mas sou de uma sorte indecente. Carrego na memória imagens de tirar o fôlego e, às vezes, a razão. Paisagens que parecem ter sido moldadas para consolar os dias que amanhecem de mau humor. Encontros que não renderam selfie, mas renderam vida. Inspirações inesperadas que surgem entre um splif e outro — e porque não, uma ideia torta no fim da tarde?

Porque, no fundo, tudo isso talvez não signifique nada. Ou talvez signifique tudo. Uma espécie de sentido secreto para essa existência que, embora pareça insignificante à luz fria da razão, brilha feito vaga-lume quando a memória acende.

E porque não?

ArTesão

ArTesão

Não tenho o dom da marreta,
da pá, do cimento, da trena.
Minha obra não é de parede —
é verbo, é verso, é cena.

Não ergo casas no chão,
mas mundos na imaginação.
Minha argamassa é palavra,
meu alicerce: a emoção.

sexta-feira, 27 de junho de 2025

O preço das palavras

O preço das palavras

Centoevinte euros. Foi isso que me cobrou a advogada da minha ex — por quem, diga-se, ainda cultivo respeito, carinho e uma admiração consciente. Centoevinte euros por uma carta. Uma carta, vejam bem, de 217 palavras. Fiz questão de contar. Palavra por palavra. Porque, afinal, cada uma delas me custou 0,553 centavos de euro. Sim, fiz a conta. Me dei esse pequeno luxo matemático antes de pagar.

Ela estudou direito. Eu, “direitinho”. E talvez esteja aí a diferença. Ela aprendeu a empilhar palavras para que valessem dinheiro. Eu insisto em empilhá-las para que valham sentido. Ela usa modelo pronto — insere nome, endereço, data, CPF. Eu uso alma, confusão, e erva sagrada como combustível.

A carta em si é só um protocolo. Atesta, com a frieza necessária, que estamos dispostos a dar ao fim a dignidade de um papel timbrado. Não há rancor ali. Nem poesia. Apenas a formalidade do mundo moderno em seu estado mais nu e cru: caro.

Fiquei pensando se esse descompasso de valores sempre existiu. Se, desde o início dos tempos, a palavra “encerramento” valia mais do que “começo”, ou se apenas agora estamos vivendo essa inversão dos afetos.

Porque eu também vendo palavras. Baratinhas. Escritos singelos, em livros de 48 páginas, que custam ao leitor módicos 8 euros. E mesmo assim, às vezes, escuto um “tem desconto se levar dois?” como quem compra tomate na feira.

A advogada — eficiente, objetiva, precisa — me cobrou por sua prática. E eu não contesto. Ela estudou direito, repito. E eu estudei direitinho, mas em outra língua: a do sentimento, do vago, daquilo que não assina contrato nem dissolve união com clareza.

Fiquei me perguntando se poesia tem alguma utilidade hoje em dia. Não utilidade prática, claro. Poesia não resolve divórcio, não devolve senha de banco, não substitui escritura. Mas talvez sirva para o que sobra. Para aquilo que vem depois da assinatura, depois do envio da carta, depois do silêncio. Poesia é o que ressoa quando o assunto termina.

Se eu cobrasse 0,553 por palavra escrita, meus livros custariam o preço de um vinho muito bom. Mas não cobro. Porque, no fundo, sei que a poesia não tem cotação no mercado. Nem deveria. Tentar calcular o valor de um verso é como medir a profundidade de um suspiro.

E, mesmo assim, ela persiste. A poesia. Vive nos interstícios dos dias. Numa música que toca fora de hora, numa lembrança que se repete como um refrão teimoso, num e-mail que você nunca enviou.

Paguei os centoevinte euros. Com uma pontinha de ironia e outra de resignação. Afinal, a vida adulta exige que a gente pague — por palavras, por silêncio, por passado. A carta foi enviada. Está tudo resolvido. Exceto, talvez, essa diferença irreconciliável entre o que custa e o que vale.

Ela estudou direito. Eu, direitinho. Ela aprendeu a escrever palavras que encerram. Eu continuo tentando escrever as que abrem.

Vizinha sui generis

Vizinha sui generis 

Ela mora há uns três anos numa calçada no boulevard Diderot, entre o hospital Saint-Antoine e a Gare de Lyon. Digo “mora” com a leveza de quem reconhece um lar onde oficialmente não há nenhum. SDF, como dizem aqui — sans domicile fixe —, o que soa muito mais elegante do que “moradora de rua”, quase um cargo público de Paris: Sentinela do Vazio.

A barraca de camping, já desbotada pelo tempo e pela poluição, é sua fortaleza. Diante dela, uma mesinha improvisada, uma exposição de bugigangas que desafia qualquer curadoria: velas gastas, esmaltes velhos, bonequinhas sem perna, maquiagem vencida, um espelhinho trincado e… livros. Uma livraria de calçada com acervo melhor do que muita biblioteca de subprefeitura.

Sempre que passo por ela — e passo quase todo dia, como quem confirma que a realidade ainda existe —, está sentada na porta de sua tenda, com um livro numa mão, um latão de 8.6 na outra, e uma tora acesa nos lábios. Sim, a tora. Não de madeira, claro. Um baseado. Daqueles caprichados, enrolado com técnica e calma, do tipo que daria orgulho a um jamaicano e inveja a um poeta. Solta uma fumaça espessa e doce, que perfuma o ar com alguma coisa entre incenso e insubmissão.

Apesar de visivelmente suja — e que mulher não estaria, morando numa calçada em Paris? — ela está sempre arrumada. Do seu jeito. Unhas feitas, cabelo preso com propósito, maquiagem aplicada com fé e pouca coordenação motora. Tem dias em que parece a versão punk de uma santa barroca: um tanto suja, mas absolutamente devota.

Hoje parei, não por ela — já sou viciado nessa imagem —, mas pelos livros na mesinha. Vi O Ser e o Nada, do Sartre, como quem deixa um aviso de presença. O Mundo como Vontade e Representação, do Schopenhauer, como quem grita que a dor é inevitável, mas pode ser explicada. E o que lia naquele momento, com o olhar mergulhado em cada frase como quem pesca minhocas em abismos? Breviário de Decomposição, do Cioran. Esse livro que você não lê: sobrevive.

Ela lia, tragava a tora e tomava pequenos goles da 8.6, como se alternasse filosofia, THC e álcool em doses precisas. Quase uma dieta metafísica.

Não trocamos palavras. Já pensei em puxar assunto, mas temo que ela saiba mais que eu. Temo que responda com uma lucidez tão cruel que eu volte pra casa me sentindo o verdadeiro SDF: sem domicílio emocional, sem endereço intelectual, sem ideia do que fazer com o que sei.

Porque, no fundo, ela é isso: um enigma sujo, perfumado e lúcido. Uma mulher que lê Cioran com maquiagem borrada e cheiro de erva no ar, enquanto o resto do mundo corre apressado para perder o sentido da vida em escritórios, reuniões e boletos.

E eu, que pago um aluguel indecente por 24 metros quadrados de solidão com aquecimento, passo por ela e penso: ela é mais fixa que eu. A barraca dela não muda de lugar. O olhar também não. Está sempre lá, parado em alguma página do desespero lúcido.

Madame de Nada, chamo mentalmente. Porque do nada fez morada. Porque da rua fez biblioteca. Porque do caos fez rotina.

E porque, convenhamos, não há nada mais profundamente humano do que fumar um baseado e ler Cioran às dez da manhã numa calçada de Paris.

Um Serraqueo em Paris

Um Serraqueo em Paris 

Acordei com o tipo mais específico de saudade: coxinha com catupiry. Não era fome, era memória. Daquelas que se escondem na língua e atacam de surpresa, como se o estômago tivesse calendário próprio. E justo hoje, em Paris, com esse calor infernal de verão temperado, que combina com Pastis e pétanque, e, claro, com frango empanado e requeijão cremoso.

Serraqueo da rua Gravataí — título que carrego com orgulho e certo sotaque — comecei meu ritual matinal: ristretto com croissant (duplo fingimento), ducha morna, jornal Libération numa aba do tablet, Estado de Minas numa outra. Essa dança franco-mineira que venho ensaiando há anos, como quem tenta convencer a alma de que mudou, mesmo quando o coração ainda pede tropeiro com torresmo.

Folheando o jornal, dei de cara com notícias do Cabuloso. Nostalgia, camisa azul, lembranças de rádio AM e estádio lotado com a China Azul. Do outro lado da página, aquele time monocromático cujo mascote é uma ave empoleirada na empáfia. E foi nesse cruzamento de símbolos que a coxinha voltou ao pensamento — com catupiry escorrendo como lágrima de ex-namorado arrependido.

Tentei fugir do desejo. Escrevi um poeminha singelo, desses que ninguém lê e só servem pra gente fingir que elaborou o que sente. Mas era inútil. A larica crescia e o estômago cantava alto, estilo Janis Joplin em fim de show, sem maquiagem e com os seios à mostra.

Abri o Google: “coxinha com catupiry Paris”. O motor de busca engasgou. Ofereceu curso de francês, artigo sobre o tráfico internacional de queijo e, inexplicavelmente, um texto sobre a fauna brasileira. Insisti. Achei três restaurantes “brasileiros”, entre aspas e de avental engomado. Um servia feijoada às terças com garfo e faca (!). Outro oferecia “coxinha vegan de lentilha com tofu defumado”. A alma mineira em mim chorou.

Fui ao Instagram. Vi queijo minas, goiabada cascão, guaraná, empadinhas sorridentes. Até pão de queijo meio murcho, mas ainda assim heróico. Nada, porém, de catupiry. Um influenciador até mostrava uma coxinha, dessas esguias, com cara de jejum intermitente. Uma lágrima escorreu — metafórica, mas sentida.

Última esperança: Uber Eats (o Ifood daqui). Encontrei açaí gourmet (com morango e granola francesa), pão de queijo recheado de brie, pastéis com sotaque parisiense e uma tal “tortinha de frango ao queijo fondue”. A fome venceu. Pedi. Nove euros. Sem taxa de entrega. Quase um roubo poético.

Comi em silêncio, olhando pela janela, pensando na padaria da rua do Ouro. Aquela que abria antes do sol e fechava depois do último torcedor passar. O balcão cheirava a fermento, conversa fiada e café ralo. A moça do caixa usava tiara de oncinha e distribuía “bom dia” como bênção.

Paris tem o Louvre, sim. Tem a Torre, os filósofos, os vinhos. Mas não tem coxinha com catupiry. E isso, meu amigo, nem Camus explica.

Amanhã talvez eu acorde querendo só um croissant. Talvez tente esquecer. Mas sei que não vai passar. Porque quem já provou uma boa coxinha mineira sabe que não existe equivalente no mundo — nem mesmo em Paris.

E aqui sigo, Serraqueo em exílio voluntário, com saudade servida em porção individual, sem acompanhamento.

quarta-feira, 25 de junho de 2025

A nutricionista formosa

A nutricionista formosa 

Com seus 1,67 de altura, bem acomodados em 83 quilos de pura formosura, Cíntia decidiu, ainda na adolescência, que seria nutricionista.
Fez o anúncio entre um pastel pingando e uma Coca gelada de 600 ml, e foi recebida com olhares entre o espanto e o riso abafado:
— “Nutricionista? Mas você só come besteira, menina! Sua mochila vive suja de chocolate e cheia de papel de bala!”

Ela não se abalou.
Porque onde os outros viam contradição, Cíntia via vocação.
E vocação não se pesa.

Estudou, suou (não em academia), e passou no vestibular da Estácio.
Federal era complicado demais, cheio de prova difícil, e de gente magra com pressa.
Preferiu o caminho mais curto — menos fila, mais aceitação.

No primeiro dia de aula, causou rebuliço:
Colegas a observavam como quem vê batata frita em refeitório de hospital.
Mas Cíntia seguia, firme. Comia Bis em aula de bioquímica, balas de goma nas práticas de dietética, e abria caixas de bombom Garoto como quem consulta o capítulo de um livro.
Almoçava no Xodó e jantava religiosamente no carrinho de cachorro-quente embaixo do apartamento dos pais, na Augusto de Lima.
Rejeitava o prato feito da mãe com disciplina: arroz, feijão, carninha moída, angu, saladinha e Sazon.
Preferia cheddar.

Formou-se sem distinção, mas com gosto, e antes do baile, subiu na balança com a serenidade de quem já sabe:
97 quilos de delícia pura.
Quatorze a mais, e nenhum arrependimento.

Nos primeiros seis meses, nenhum emprego.
Ninguém queria contratar uma nutricionista que parecia cliente do próprio fracasso.
Foi então que seu pai, bombeiro quase aposentado, puxou um empréstimo no Bradesco e alugou uma salinha na rua do Ouro, pequena e honesta, com vista pra rua Monte Alegre, e cheiro de tinta nova.
Ali, Cíntia montou seu território:
Mesa, cadeira, balança, banner da pirâmide alimentar e um porta-copos da Disney.

Quarenta e cinco dias depois, apareceu Silvia, balzaquiana, portadora de Crohn e de um senso de urgência bem alimentado, morava na rua Dona Cecília.
Achou Cíntia pelo catálogo da Unimed, marcou uma consulta, afinal, seu consultório era “logo ali”.
Só viu a nutricionista ao vivo na hora da consulta — e quase voltou pra casa.

Cíntia usava jaleco, mas também uma barra de Heycher’s semiaberta.
Falava sobre alimentação funcional mastigando goma de tutti-frutti.
Recomendou, com voz doce e dedos melados de chocolate:
– Café da manhã: pão integral, suco espremido na hora, ovo cozido.
– Almoço: arroz, feijão, legumes, carne branca.
– Jantar: sopa leve ou peixe assado com batatas.
Entre uma instrução e outra, tomava um Mate Couro gelado, com o canudo mastigado na ponta.
Imprimiu a dieta personalizada com entusiasmo.

Silvia ouviu, mas não ouviu tudo.
A imagem falava mais alto.
Na hora de sair, algo brilhou em meio aos papéis na lixeira do consultório:
uma embalagem amassada de New Foods…

Seguiu a dieta direitinho.
Perdeu peso.
Ganhou uma dúvida.
E trocou de nutricionista.

Mas nunca esqueceu Cíntia.

Que continua lá, com seus 1,67, agora talvez uns 98 quilos de coragem e chocolate.
Não emagrece, mas conhece cada alimento como quem namora a tabela nutricional.
Sabe que coerência emagrece o pensamento.

E que, às vezes,
a melhor dieta começa por aceitar
que o corpo da nutricionista
também é humano,
e deliciosamente contraditório.

terça-feira, 24 de junho de 2025

Saco, quase cheio

Saco, quase cheio

Eram quase três da manhã, aqui em Paris, quando eu e meu tio-brother trocávamos mensagens no WhatsApp. A essa altura da madrugada, a insônia já não pede explicação, só companhia. Ele mora em BH, é alguns anos mais velho, torce pra um time monocromático — o que já revela muito sobre seu senso de estética e sofrimento — e, vez ou outra, resolve brincar de cronista.

“Você já leu minha crônica De saco cheio?”, perguntou ele. E antes mesmo que eu pudesse responder com um “já” sonolento ou um “manda de novo”, ele emendou: “Ainda não vi você escrever uma crônica…”

Aí foi golpe baixo. Não pelo conteúdo, mas pela estrutura: esse “ainda” escorregadio, que vem cheio de expectativa disfarçada de incentivo. Esse “você” tão direto que parece apontar o dedo. E essa “crônica”, que soa fácil na boca de quem já escreveu, mas pesa uma tonelada na mão de quem ainda está devendo.

Respondi, claro, que já tinha lido, sim, mas que releria com mais atenção no dia seguinte. E que talvez, dependendo do humor do universo e do silêncio das crianças invisíveis que moram na minha cabeça, eu até tentasse escrever uma também. Mesmo sabendo que meu tio, esse ser de letras — ao pé da letra — e testículos lendários, não é leitor de fácil agrado.

É que ali, naquela hora da noite em que até o Fritz boceja devagar, eu não estava pra leitura. Morfeu me chamou, sem educação, e eu fui. Deitei tarde, dormi pouco, como de costume. Três horas e uns minutos. E, coisa rara: não sonhei com Deusas, nem com “otras cositas más”. Sonhei com trechos de O lutador: “Lutar com palavras é a luta mais vã. Entanto lutamos mal rompe a manhã.” Acordei com a sensação de que eu lutava demais. Ou talvez pouco demais.

Às seis e quarenta e cinco, abri os olhos com a pressa de quem não tem compromisso nenhum além de existir. E pensei: que urgência é essa de despertar? Que relógio interno é esse que me cobra textos, respostas e crônicas às terças?

Levantei. Fumei unzinho. Sentei. E enfim li De saco cheio.

Gostei. Me diverti. E, por um breve instante, tive vontade de fazer o mesmo: transformar um detalhe incômodo — no caso dele, um abscesso testicular; no meu, a cobrança fraternal — em literatura. Claro que ele fez melhor. Ele teve um hospital, um pátio, enfermeiras quase lascivas, um polonês pálido com cicatriz na alma e até uma referência a Auschwitz. Eu tenho… uma terça-feira de verão e o desafio de fazer graça com o que ainda nem dói.

Mas talvez seja isso que uma crônica faz: pega um saco — cheio, murcho, leve, extra ou simbólico — e transforma em história. Com sorte, em riso. Com jeito, em memória.

E aqui está a minha. Meio belorizontina, meio parisiense. Com afeto sincero.

Sem moral, mas com alguma ironia.

Porque, como dizia o poeta, “Lutar com palavras parece sem fruto. Não têm carne e sangue… Entretanto, luto.”

segunda-feira, 23 de junho de 2025

Gaudia et cicatrices — vita procedit

Gaudia et cicatrices — vita procedit

Ela tem mágoa, e eu compreendo.
E talvez, por vezes, algo pior.
Não fui leve — tropecei tremendo
no que se espera de alguém maior.

Errei, e nem adianta disfarçar.
Fui ausente onde era pra ser inteiro.
Hoje, afastado, não posso amparar —
e o pior é que o problema é o dinheiro.

Sempre foi. Feriu mais nela do que em mim,
e eu via, mesmo sem saber lidar.
Mas também fui parte do que teve fim,
e do que — apesar de tudo — vai ficar.

Tenho noção do quanto desalinhei,
e do que restou torto, por distração.
Mas não renego o que a pele ofereci —
os risos, os orgasmos… a combustão.

Ela também me feriu, sem rodeios.
Ninguém sai incólume de amor profundo.
Mas o brilho venceu os devaneios,
e houve beleza no nosso segundo.

Peço e pedirei perdão sem vergonha,
com enorme gratidão no coração.
Mesmo se a mágoa nela ainda sonha,
carrego isso até meu último suspiro, então.

É amor que persiste, sem exigência
de retorno, promessa ou conciliação.
Mãe de três — vértice da minha essência —
ela reside serena no meu coração.

Perdoei meu pai — não por virtude,
mas por compreender que tudo se esgota.
Como não perdoar quem, em plenitude,
foi minha casa, mesmo em rota torta?

Só não perdoo — e não saberei jamais —
o desgraçado que, no peito, ceifou
a mãe do meu primogênito. E o que se faz
com o tipo de dor que nunca cessou?

O resto é silêncio, vida que caminha,
com cicatriz, memória e muita paz.
O que foi de verdade, a alma guarda,
mesmo quando parece que já não faço.

domingo, 22 de junho de 2025

Cancri humanitatis

Cancri humanitatis

A Terra exausta sua em febre branda,
mas o mercado alega: “É só demanda.”
Deus, nas prateleiras, vira promoção:
“Compre a Verdade e leve a Salvação!”

O câncer avança — fé metastática —,
cura-milagre, dor dogmática.
Rezando em coro, o rebanho tropeça,
crendo que o dízimo paga promessa.

Do outro lado, em ternos de Excel,
o lucro posa de anjo fiel.
Sorri, privatiza, depois terceiriza:
quem morre de fome é quem mais valoriza.

A ciência alerta: estágio I.
Mas o sistema já fede, sim.
Há sintomas visíveis, necrose fria —
o nome disso? Neoliberal mania.

A única chance, sem cirurgia,
é anarcocomunismo com naturoterapia.
E o ateísmo, calmante eficaz,
tira o delírio, devolve a paz.

O corpo é coletivo, a alma é matéria.
Ninguém se salva sozinho na miséria.
Desliga o templo, rasga o cifrão:
cura se faz com vida em comunhão.

Cancri humanitatis

Cancri humanitatis

Religião, estágio III,
lucro, estágio I —
ambos sorrindo, aqui
no caos que vai por fim.

Um vende céu por tostão,
o outro corta a razão.
Pregam ordem, plantam dor,
colhem morte e dizem “amor”.

Mas há cura, ainda que fria:
naturoterapia.
Com ateísmo e rebeldia,
anarcocomunismo é poesia.

Humanitas aegrotat

Humanitas aegrotat

O mundo tem hoje 134 fogueiras acesas,
e só 3 bombeiros — bêbados.
Há conflitos com nome e sobrenome,
e outros tão antigos
que a gente já nasce devendo explicação.

A Rússia morde a Ucrânia como quem diz
“Isso sempre foi meu!”
E o Ocidente assopra com tanques e sanções,
enquanto finge que ajuda.

No Oriente Médio, o inferno tem CEP.
Desde 1948,
Israel ocupa, expulsa, mata, segrega — e se diz vítima.
Gaza virou uma palavra proibida
nos jantares elegantes.

O Hamas atira,
Israel responde com uma avalanche.
E o mundo calcula os mortos
como se fossem boletos vencidos.

No Líbano, o Hezbollah brinca de “quem começa?”
e o Irã manda presentes com pólvora.
A Síria virou tabuleiro de War,
mas sem manual de regras.

No Iêmen, o povo morre de tudo:
de guerra, de fome,
de falta de notícia.

Na África, tem guerra civil onde nem Estado há,
no Sudão, no Sahel,
no Congo, na Etiópia —
lugares onde a esperança não tem passaporte.

Na Ásia, a China sopra no cangote de Taiwan,
a Índia encara o Paquistão de sobrancelha erguida,
e no Myanmar a democracia foi presa
sem direito a habeas corpus.

E o Haiti?
Virou sinônimo de desespero.
O México e a Colômbia,
roteiros de narcos patrocinados pela omissão.

Enquanto isso, o Estado Islâmico
é tipo cupim:
atua no mundo inteiro, mas ninguém vê de onde sai.

E as potências brincam de roleta russa,
com flertes nucleares e risadinhas geopolíticas.
Trump ressurge como ressaca,
e a ONU escreve notas de repúdio em papel reciclado.

Menos ganância, abaixo à religião!
Que deus(??) desça, se quiser,
mas sem exército.

Mais tolerância, amor,
sexo (com consentimento!),
mais arte,
mais poesia,

porque matar por uma ideia
é o cúmulo da burrice —
e morrer por ela,
é só falta de criatividade.

sexta-feira, 20 de junho de 2025

Blauer Winter

Blauer Winter

Inverno azul, céu sem sombra,
hermana ao lado, presença que alomba,
Wiener Schnitzel, o gosto do dia,
calor que aquece em doce harmonia.

O tubarão ruge, cinema vivo,
ondas de metal, som expressivo,
orquestra germana, mar em festa,
invade o espaço, não se resta.

Italiano o quarteto desliza,
Si bemol em dança precisa,
sombra que nasce da luz contida,
groove que voa na noite sentida.

No Gorlitzer o ar é verdinho,
flor que sussurra no doce caminho,
fumaça leve em tom suspenso,
silêncio verde, dia intenso.

Planeta caeruleus, panis communis

Planeta caeruleus, panis communis

Menos hierarquia,
um pouco mais de anarquia (responsável),
nem tanta tirania,
nem caos irreversável.

Nem tanto ao céu,
nem tanto ao chão,
mas onde se colha
o que se põe à mão.

Neste planeta azul,
nossa casa milenar,
tanta ordem fez-se mula
sem vontade de pensar.

Chamaram de paz o medo,
de lei, a imposição,
de futuro, um degredo,
de justiça, a opressão.

Mas surgiram vozes firmes
no rastro da ilusão:
Kropotkin com seu pão livre,
Malatesta em rebelião.

Carlo Cafiero dizia:
“Comum deve ser o pão!”
E a fome não merecia
trono, farda ou patrão.

Na Comuna, um lampejo,
na Espanha, rebeldia,
na Ucrânia, o mesmo ensejo —
viver sem tirania.

O anarcocomunismo,
com sua chama tão sã,
não clama por abismo,
mas por mesa e manhã.

Nem senhores, nem muralhas,
nem partidos de exceção,
só redes onde se valha
a troca por afeição.

Cada qual com sua força,
cada um com seu lugar,
sem diploma de polícia
pra aprender a cuidar.

Pode soar utopia,
um delírio, uma paixão,
mas do caos e da agonia
brota a flor da solução.

Camaradas, não tem truque:
ou se parte essa prisão,
ou o planeta azul desaba
em silêncio e solidão.

Pode parecer sonhar demais,
mas há lógica na razão:
o anarcocomunismo
é, sim,
a solução.

quinta-feira, 19 de junho de 2025

Crer ou não crer: eis a questão

Crer ou não crer: eis a questão 

Sou ateu desde criança,
quando acabou a esperança
de que deus fosse verdade
e não só necessidade
de quem tem medo do escuro
e precisa de um futuro.

Percebi: coelho não põe ovo,
isso é papo bobo e novo
pra vender chocolate caro
no calor do calendário.

Depois, veio o velho imundo,
barbudo e sujo do mundo,
que só dá presente a quem tem,
e pra quem não tem: desdém.
Esse porco capitalista
disfarçado de altruísta
caga na lareira alheia
se a criança for da aldeia.

E teve ainda o Pinocchio,
mais um boneco e seu ópio.
Fé de madeira barata
que o nariz logo desata.

Mas mesmo sem deus no altar,
meu coração foi buscar
um outro tipo de fé —
de carne, perfume e pés.

Pré-adolescente, inquieto,
me encantei por um amuleto:
Deusas de carne e desejo,
com olhar que vale um beijo.

Depois, já um pouco crescido,
foi o feitiço que ouvi.
Feiticeiras com sorriso
que bagunçam meu juízo
e me encantam só de rir.

Na vida adulta, as bruxas.
Algumas doces, outras brutas.
Mulheres de força e vinho,
que cruzaram meu caminho,
e, no laço que formamos,
nós nos transformamos.

E agora, com mais idade,
acredito com vontade
em fadas — sim, de verdade.
Sábias, leves, transparentes,
com poderes tão potentes,
pra erguer meu coração
e reacender minha canção.

deus? Nunca vi, nem sinal.
Mas posso provar que elas —
as Deusas, as feiticeiras,
as bruxas e as tagarelas
fadas da mais pura idade —
existem. São verdadeiras!
Carne, gozo, riso, prazer:
minha forma de crer e ser.

quarta-feira, 18 de junho de 2025

猫のフリッツ 5-7-5

猫のフリッツ 5-7-5

Fritz sous la lune,
Parfum d’herbe dans les rues…
Le miaule jazzy

Fritz le chat

Fritz le chat 

Fritz le félin rôde
Odeur d’herbe dans les codes —
La nuit, c’est son ode.



Arthur e o rap

Arthur e o Rap

Desde o berço, concertos de Brandemburgo embalavam-lhe os sonhos. Antes mesmo dos passos, vinham as palavras — claras, precoces — e, nos silêncios cúmplices entre pai e filho, desabrochavam Ligeti e Debussy. Na casa dos avós, e com a amada mãe atriz, vinham os ecos de bossa e do samba de raiz. O destino, esse velho ladrão de afetos, levou o pai por um tempo, mas não conseguiu levar o bom gosto. Arthur ouvia o que a babá chamava de música — “ela escuta música de rádio!” — e comparava com a lucidez de um pequeno crítico.

O reencontro foi como num filme que se recusa a ser triste. Com apenas três anos, ele cantou Chovendo na Roseira a capela. Vozinha angelical, afinação de espantar os anjos, expressão de velho sábio. Vieram os clubes de jazz com o pai, os papos com músicos adultos, como se fosse um deles. Começou as aulas de musicalização na Fundação e, quando a vida, cansada de separações, resolveu uni-los de vez — dessa vez na Cidade Luz —, ele mergulhou no Conservatório. Flauta doce barroca, depois violoncelo aos treze. Amava AC/DC, colecionava Mahavishnu. Era erudito e elétrico, clássico e caos.

Mas, aos quatorze, algo rompeu. Uma dor sem melodia. Quando entendeu o que acontecera com a mãe, o verbo explodiu. Os opiáceos e os “benzos” se tornaram abrigo químico — escudo contra o próprio ser. Largou os arcos, as partituras e a alegria. Abraçou o rap. Trocou a harmonia pela raiva, as notas longas pelo verbo cru. O mundo não merecia mais beleza. Não havia mais tempo para lapidar som — só urgência de cuspir palavra.

Não era música. Era sobrevivência.
Aqui jazz, Arthur - 03/06/2024

Sacra vetita

Sacra vetita

Muito antes da pressa e do trânsito,
a flor já florescia.
Ali por volta de 10.000 a.C.,
na Ásia que viraria China ou Mongólia,
já se colhia maconha com respeito.

Era comida,
era corda,
era papel de oração.
E quando a dor apertava,
vinha a cura:
insônia, inflamação,
desassossego —
tudo tratado com flores e serenidade.

Shen Nung, imperador e herbalista,
assinava a receita:
a flor alivia.
O tetra hidro canabidiol,
esse nome longo e honesto,
já fazia milagres antes de ser proibido.

Na Índia, virou sagrada.
O Atharva Veda a chamou de amiga.
Nos rituais, surgia no bhang,
bebida que subia suave,
acendendo a mente sem apagar o corpo.

Sitas no deserto,
inalando fumaça como quem invoca o tempo.
Na África,
era consagrada em tambores e curas.
E entre o Oriente e o Norte da África,
surgia o hax:
resina da flor,
concentrado da calma,
brasa ritual,
toque direto no pensamento.

Depois, Europa.
Idade Média,
idade da corda — de cânhamo.
Velas de navio,
camisa de camponês,
e papel onde se copiava
verso, lei e pecado.

Nas Américas, atravessou o oceano
com os colonizadores.
Foi cultivada, estudada,
e usada até por figuras ilustres
que hoje estariam presas.

No século XIX, era remédio.
Encontrada nas farmácias,
curava espasmos, acalmava mentes,
e ajudava artistas a escutar a cor azul.

Mas aí veio o século XX,
e com ele o medo.
Nos Estados Unidos,
a maconha virou alvo de racismo travestido de moral.
Campanhas, filmes toscos,
leis moldadas por preconceito e interesse.

O Marihuana Tax Act de 1937
foi mais censura que imposto.
Convenções internacionais seguiram o coro:
proibir uma planta
pra manter um sistema.

E assim,
a flor foi empurrada para a sombra,
não por seus males,
mas por sua liberdade.

Só que ela continua.
Maconha não grita.
Age em silêncio.
Aguça os cinco sentidos
— e talvez um sexto —
acalma sem apagar,
inspira sem iludir.

Afia a escuta,
desacelera o excesso,
abre espaço pra criatividade
como quem abre uma janela num quarto fechado.

Não entorpece —
desperta.

Proibir maconha é temer o que não se controla.
Manter a proibição é dar lucro a quem vende o caos.
É ignorância de terno,
ganância de farda,
e hipocrisia com bíblia na mão.

Enquanto isso,
a flor e sua resina pensam.
E quem as respeita,
pensa melhor.

Ars musicae

Ars musicae

Antes da bíblia, do grito, do verbo
já se soprava em ossos de pássaros.
Não era prece, nem pedido,
era flauta.
Aurignacianos, sem saber,
tocavam sinfonias para o escuro.

Vieram os tambores,
batucando peles e medos,
coagulando o tempo em compasso.
Veio a dança pintada em caverna,
o batuque que moveu a pedra
e a alma (se isso existia).

Muito antes do fiat lux,
já se cantava.
E talvez deus não tenha dito nada —
só assoviou um tema em modo menor.

Os neandertais, segundo consta,
tinham ritmo.
É possível que se apaixonassem
por meio de uivos sincopados.
Darwin, meio surdo, mas esperto,
achou que música servia
pra seduzir,
e não é que serve?

Bebês batem palmas sem saber por quê.
Pássaros flertam em falsete.
Gorilas dançam quando chove.
O que mais você quer como prova?

Escrevemos partituras em argila.
Inventamos escalas, ragas,
estrofes, árias e autotunes.
Platão desconfiava do tom menor.
Schopenhauer preferia Wagner.
No fundo, ambos queriam silêncio —
mas com trilha.

A música, dizem, é universal.
E é verdade:
ninguém escapa dela,
nem mesmo no elevador.

Os povos dançam, rezam, casam,
marcham, transam, enterram,
sempre ao som de algo.
Se não tem música,
o ritual é fraco, o gozo é morno,
o luto não pega.

E enquanto isso,
o maestro amigo me sopra entre goles:
“Gosto não se discute,
aprimora-se”.
E aprimoramos.

Mas uma coisa é certa:
deus não existe.
Existem as Deusas,
e a sublime, sagrada,
arte das musas.

segunda-feira, 16 de junho de 2025

SurRondel azul

SurRondel azul 

Luz Azul
Aibofobia
Radar
Amanama

Reler
Luz Azul
Amanama
Radar

Reler
Luz Azul
Amanama
Radar
Reler

A fábula mineira

A fábula mineira
(Gustavo de La Fontaine)

Em um quintal de película velha —
Preto, branco e toda a escala média —
As frangas viviam, de alma apagada,
Numa luz de projetor, tremida, gasta.

Entre elas, sombras de um cinema mudo,
Bicando o pó, o nada, o absurdo,
Com o peito cinzento, o olhar de celuloide,
Coladas ao chão como figurantes de umroid.

Eis que entra a raposa, um raio de azul vivo,
Rasgando o fotograma, tentando um desvio.
Com o pelo de um oceano na pele,
Com o passo de um prince, que ninguém repele.

Com um golpe preciso — quase um verso final —
Colheu a presa no próprio quintal.
As frangas, na falta de cor e de norte,
Foram ao banquete… e ele à sorte.

Assim a fábula revela, pelo cinza e pelo tom,
A voracidade que mora no próprio som —
De um mundo a preto e branco, de alma presa,
Onde o azul é parte, sem choque, sem surpresa.

Alexandrim

Alexandrim 


De onde o horizonte é belo e as minas gerais,

Meu peito acende mundos na pele da fala;

A língua de nascença é o peito que exala

Seu próprio barro, ouro, espinhos, e metais.


Mas a outra, o francês, nas margens do Sena,

É um espelho torto onde a voz se embala;

Com tons de ironia, a alma se revela

Na dança de Paris, luzindo na cena.


Assim vou pelo mundo, de dois mundos cheio,

Com a palavra acesa, a lâmina no peito,

Colhendo o próprio nome pelo caminho;


Meu coração, de tanto, ficou alheio,

É ele próprio a terra, o livro, o leito —

Meu canto vai florindo, espinho a espinho.

quarta-feira, 11 de junho de 2025

Disque dur

Disque dur

Deusa morena,
do sorriso que esconde safadeza e sabedoria,
do olhar que me despenca —
olhar de quem sabe e provoca,
olhar de quem ri e domina.

Seu corpo:
extremamente apetitoso.
Não há metáfora mais justa.
É sonho, é banquete,
é desejo empilhado há quase vinte anos.

Quero sua boca,
essa que diz verdades com graça,
e que eu sonho em beijar
com a sede de quem atravessou desertos.

Uma mão se perde entre seus peitinhos de menina,
e a outra, generosa e firme,
acaricia sua bunda de rainha
de escola de samba.
Ah, esse desfile que mora em você!

Te despir com calma,
me despir também —
tudo em sincronia:
tatear, lamber, mapear seu corpo
como quem lê um texto sagrado
com a língua.

Dedilhar seu mamilo esquerdo,
durinho, arrepiado,
enquanto minha boca saboreia seu néctar,
e minha mão direita —
indicador e médio, apóstolos do prazer —
invocam seu ponto Genial.

Te ver cavalgar,
te ver subir e reinar,
até você jorrar uma véu da noiva
em espasmos sagrados
sobre nosso Ganges —
nosso leito sagrado.

E então te pôr de ladinho,
vaivém crescente,
alternância de abismos e voltas,
até o tempo entrar no be-bop:
frase curta, batida frenética,
socando tudo com ritmo e ternura.

Te ver encharcar o lençol outra vez.

E ainda te virar:
te pôr de quatro,
te analisar com a língua —
cientista e amante.
Dilatando devagarinho,
um dedo, depois dois,
talvez três…
até, com amor, sodomizar-te.

E no final, juntos:
gozamos.
E nos deitamos abraçados,
olhando o teto como quem contempla o céu de uma infância.
Tudo salvo no nosso disque dur,
esse que só se abre por reconhecimento facial,
onde mora o segredo do que é proibido —
e eterno.

terça-feira, 10 de junho de 2025

10/06/2025 (um ano e uma semana depois)

10/06/2025
(um ano e uma semana depois)

Pelos cinzas, dançam Wayne e o vento,
23° no dorso do tempo sem solo,
Tiramisú derrete o pensamento,
Fritz mia um solo no meu colo.

Strawberry Akel, em flor dissolvida,
Infant Eyes —
azul,
sem forma, sem culpa, com vida.

segunda-feira, 9 de junho de 2025

Fritz o gato

Fritz o gato

Fritz não é pet, é outro tipo de ser —
colocataire que só sabe acolher.
Não paga aluguel, nem lava o chão,
mas tem seu valor: e não é de ilusão.

Tem inteligência que lembra um cão,
e um toque de gato em cada ação.
Limpo, elegante, dorme em posição
que parece ensaiada pra exposição.

É base harmônica quando repousa,
um ronronar suave que tudo acalenta.
Mas se algo o inspira, em plena ousadia,
solta um miado — jazz na melodia.

É cão no afeto, sem baba, sem cheiro,
me espera na porta, fiel companheiro.
Me escuta subindo, já fica a postos —
parece até dono, com olhos expostos.

Mas tem o mistério que só gato tem,
desaparece no ar, volta zen.
É leal sem grude, é livre com norte,
me dá companhia sem trancar a sorte.

Caça o que voa, o que rói, morde e não dói,  
derruba objetos com patadas educadas.  
É artista da casa, terapeuta felino,  
com alma de cão e olhar cristalino.

Dá despesa? Quase nenhuma. E se for somar,
vale cada grão que vem do jantar.
Pois onde há um Fritz, há riso, calor —
há música viva e um tanto de amor.

domingo, 8 de junho de 2025

Valhalla

Valhalla

Stroopwafels ardem na língua do tempo,
grudam no céu da boca da eternidade —
cogu dança nos olhos de Van Gogh,
as orelhas dele sussurram Monique,
deitada nua sobre o lençol azul
que cobre o leito dos trilhos de Amstedã

A bicicletinha, sem freios nem freios,
corre sozinha pelas veias do mapa,
todos os canais levam aos seios fartos
que zombam da gravidade como anjos caídos
com mamilos que apontam pro além

Ghost Train Haze sopra seu feitiço,
traz risos que brilham em câmera lenta,
ergue torres de nuvem na mente febril
e faz da alma uma locomotiva
correndo sem trilhos, sem tempo, sem ré

Erva da boa gira nas hélices do pensamento,
confunde os ponteiros, dobra as horas,
cria pássaros feitos de fumaça e desejo
que cantam em holandês dentro do peito

Monique morde um stroopwafel com os olhos
enquanto Van Gogh pinta sua vulva em aquarela,
sem moldura, sem juízo,
só a verdade nua da carne surreal
onde o delírio acende seu cachimbo
e ri

Cai uma chuva boa prazenteira,
ácida, líquida, pulsante,
como se o céu também tivesse comido cogumelo —
pingos dançam, se multiplicam,
viram olhos que piscam nas calçadas,
línguas que lambem as vitrines do delírio

De dentro da bicicleta nasce um girassol.
E Monique, holanDeusa suprema,
sorri —
milagre loiro na esquina da loucura

quarta-feira, 4 de junho de 2025

Papai é ateu, mas…

Papai é ateu, mas…

Florzinha,  
Vem cá, vou te contar com amor,  
Sobre deus, fé e o que for.  
Tem quem jure que ele está no céu,  
Com barbas brancas, num trono de véu.  

Outros, como eu, não crêem assim,  
E acham que deus pode ter outro fim.  
Mas, chérie, o que importa, de verdade,  
É viver com bondade, com curiosidade.  

Dizem que deus fez o mundo girar,  
Com estrelas, montanhas, o mar a brilhar.  
Mas talvez, Flor, só talvez, preste atenção,  
deus seja um conto do nosso coração.  

Como quando você inventa um herói,  
Com capa, coragem, que voa e se formou.  
As pessoas sonharam: “Como ele seria?”  
E deram a deus o que a alma queria.  

Deram amor, justiça, um olhar protetor,  
Histórias pra guiar, pra afastar a dor.  
Mas, às vezes, Flor, com tanto fervor,  
Esquecem de ouvir quem pensa com amor.  

Tem quem grite que só deus é a lei,  
E julgue o outro com fogo que sei.  
Mas, minha pequena, com asas no olhar,  
O mundo é mais livre pra quem sabe amar.  

Não é um deus que faz o bem brotar,  
É o coração que escolhe se doar.  
E se papai não crê num céu a rezar,  
É na terra que ensino você a voar.  

Seja gentil, curiosa, nunca se curve,  
Pergunte, descubra, o mundo é que serve.  
Pois mesmo sem deus, com ou sem razão,  
Papai é seu guia, com luz no coração.  

Decepção na Colméia

Decepção na Colméia

A deputada espanhola,
de cruz e pistola,
corre atrás do repórter negro
como quem caça esmola.

Invade sistema, finge ser outra,
pede PIX com fé devota,
posta selfie com arma e hóstia,
fala em deus com voz de idiota.

Falsidade? Sim. Ideológica.
Invasão? Também. Informática.
A pena? Dez anos, bem contados.
Mas seus passos já são italianados.

Si parte per l’Italia!
como quem vai à missa.
A extrema direita tem fé,
mas na justiça…

desliza.

Contemplar

Contemplar

Contemplar a cor da ausência,
o azul que arde sem pudor no contrabaixo das constelações,
onde cada nota vibra no útero do tempo,
e o tiramisú se derrete na língua da memória.

Molhadinha, faróis acesos —
a noite se oferece em carne de vela,
com os olhos vidrados no golaço do Cabuloso,
onde a arquibancada uiva em esperanto lunar.

Jack Herer canta no pulmão do infinito,
as cinzas dançam com os seios da fumaça,
e o cheiro de Deusa no cio
abre fendas no real,
fazendo do delírio
uma flor.

Contemplar, então,
é descalçar a lógica,
e caminhar nu
sobre o dorso azul
da imaginação.

terça-feira, 3 de junho de 2025

Un an

Un An

Aujourd’hui, un an. Et tout se tait,
sans ta présence, ton amour parfait.
Le temps s’étire, mais peine à guérir
la plaie de t’avoir vu partir,
toi, mon premier, ma racine vive,
mon fils perdu au bout d’une dérive.

Entre le deuil et un souffle apaisé,
douze années d’un combat épuisé.
Maintenant tu dors, délivré du mal,
près de ta mère, dans l’amour total.

Ton rire demeure, lumière en secret,
dans la nuit des jours, quand le soleil se tait.

Um ano

Um Ano

Hoje faz um ano. E tudo é silêncio,
sem sua presença, seu afeto imenso.
O tempo caminha, mas mal cicatriz
a dor de perder meu primeiro, meu raiz.

Fico entre o luto e o alívio —
doze anos de luta, um longo declive.
Agora descansa, livre da dor,
com sua mãe atriz, no mesmo amor.

Seu riso persiste, secreto farol,
no escuro dos dias, no frio do sol.

domingo, 1 de junho de 2025

Ūnicae

Ūnicae

Foi o amor mais puro, mais sincero, mais intenso — desses que parecem ter sido escritos por um poeta febril, e não vividos por dois seres imperfeitos. Anos de devoção quase mística, um tesão desmedido, beirando a obsessão, como se amar fosse perder-se com gosto no outro. E eu me perdi. Pisei feio na bola. A separação veio como sentença. Não houve apelação, apenas o silêncio e a distância.

Anos depois, compreendi — com a sobriedade que só o tempo e a abstinência trazem — que foi uma das melhores coisas que me aconteceram. Parei de beber. Parei de me enganar. Fui um desastre com ela, sim. Mas também fui jardim em dia de primavera, porto seguro em noite de tempestade. Tenho plena consciência disso.

Até tentamos retomar uma amizade nos últimos tempos, mas sua chatice, que é uma característica recente, presente coincidentemente desde que ela começou a fazer análise, acabou por me despertar, por um lapso de tempo, minha maladresse que a incomodava tanto, e isso deu um banho de água fria no processo de retomada da amizade. Amizade que não acredito mais ser possível, afinal, além de ela me ter “riscado da sua vida”, segundo ela mesma, a pessoa deliciosa que foi uma grande amiga durante dez anos antes de nós apaixonarmos, parece não mais existir.

Ela, por sua vez, tornou-se aquilo que mais temia: intolerante, dura, azeda como vinagre velho. Seu jeitinho agressivo, aquele jeito bruto que só mostrava a quem mais confiava, virou espada afiada. Riscou meu nome do seu livro da vida com a fúria de quem queima cartas antigas. Ela guardou os desastres como troféus, enquanto eu carrego as alegrias como cicatrizes que brilham. Não creio que um dia ela se permita ver que também feriu, que também quebrou coisas que eu não consegui colar. Talvez nunca reconheça que fui, além de desastrado, também motivo de risos, de orgasmos, de ternura.

Mas, como não sou dono da razão, e aprendi que o mundo é um redemoinho imprevisível — quem sabe?…

Hoje sigo em paz, feliz com o que o destino me reservou. E, ao contrário da eterna musa, não a risquei, nem a riscarei da minha história. Ela mora num canto do coração onde as luzes são suaves, e a trilha sonora é a do sexo que faz esquecer quem se é. Porque seu segredo, a arma mais poderosa, é esse: o sexo divino. Aquilo que hipnotiza mesmo os homens mais lúcidos.

E se um dia — por obra do acaso ou das perversões do destino — eu puder reviver essa magia… não negaria. Mas que não passe disso. Sem promessas, sem armadilhas.

Porque sei, com uma certeza serena, que ela foi — e sempre será — a mulher da minha vida. E, ao mesmo tempo, aprendi que a vida é larga, generosa e cheia de surpresas. E que é totalmente possível ter outra mulher da minha vida. Ou mais de uma. Ou nenhuma. Porque amar, às vezes, é deixar ir. Outras vezes, é ficar quieto. E seguir.

Fritz en sécurité

Fritz en sécurité

Les grilles pour sécuriser les fenêtres sont arrivées.
Je vais trouver quelqu’un (peut-être un voisin) pour m’aider à les installer.
C’est très simple, mais avec mon handicap,
il n’y a que le sexe qui reste simple — seul ou accompagné.

quinta-feira, 29 de maio de 2025

Definição

Definição 

Conservador, no dicionário da dor,
é o que teme o amor com outro sabor.
Chama-se “reto”, mas vive torto,
fecha-se ao novo, prega o aborto—
mas só da ideia, do afeto alheio,
do beijo queer no meio do recreio.

É misógino de missa e de machete,
xenófobo em inglês com sotaque de sete.
Faz do racismo seu pão com manteiga,
ri da tragédia, mas chora se o boi se esfrega.

Transfóbico? “Só defendo a família!”
Ignorância empilhada em empilhadeira de milha.
Canta o hino como se fosse oração,
mas reza por armas com devoção.

Tão seguro de sua moral de caverna,
que ao ver um arco-íris, tranca a perna.
Não lê, não ouve, não quer entender—
só quer um país onde possa bater.

Intolerante por dentro e por fora,
confunde “valores” com a lógica da espora.
Tem nojo de tudo que não controla,
mas treme ao ver um beijo em sua escola.

Sinônimo? Maldoso. Antônimo? Razão.
Conservador é quem tem medo do coração.
Acha-se guardião de um tempo passado
que nunca existiu… só foi inventado.

quarta-feira, 28 de maio de 2025

Pecoris Dominus

Pecoris Dominus

Era um capitão sem honra nem glória,
de chute no traseiro fez-se história.
Do exército, expulso por trambique,
virou deputado, mais morto que chique.

Trinta anos no baixo clero mofando,
sem projeto, sem fala, só berrando.
Comprou imóveis com grana no dente,
mas pro povo? Um sorriso indecente.

Presidente! Que prêmio irônico!
Fez do país um circo agônico:
armou a plebe, blindou milionário,
matou de riso — ou de vírus — o otário.

A cloroquina virou hóstia santa,
e a morte, estatística que não espanta.
Negou a ciência, o luto, o cuidado,
chamou de marica quem tinha chorado.

Rachadinha? É só um detalhe,
como um palavrão em oração de Natal.
Misógino, racista, homofóbico,
mas sempre com um tom patriótico.

“Deus, pátria e família!”, berra o gado,
sem saber que é slogan do passado
de botas, porretes e tortura,
mas vai lá, né? Fé não tem fissura.

Agora réu, que trama bonita:
golpe de Estado em noite bendita!
Se preso for, virá mártir sagrado,
com crucifixo e fuzil do lado.

E quem o segue? Triste fauna.
Ou burro, ou mau, ou alma insana.
Mas como o Mito é combo completo,
o gado olha e diz: “É o espelho certo!”

Assim, entre gritos e fake news,
vai-se o país, de joelhos e sem luz.
E o futuro? Vai rimar com “lixo”,
se não jogarmos esse verme no esquicho.

Injustiça

Injustiça 

— Papai, me diz com clareza,
por que quem limpa a sujeira
tem sempre a cor da tristeza
ou da madeira?

Fiquei mudo uns segundos,
tentando o nó desatar:
há cores herdadas do mundo
que ninguém quis trocar.

Expliquei com tom sincero,
sem pesar nem fingimento:
— Filha, o sistema é severo,
pinta a cor com sofrimento.

Quem nasce perto do trono
não esfrega chão nem pia,
mas quem tem tom de outono
nasce varrendo o dia.

Não é que seja destino,
ou falta de vocação:
é que o mundo é um moinho
que mói gente na estação.

Distribui mal os lugares,
marca cedo quem vai servir,
e fecha os mesmos altares
pra quem só quer existir.

— Mas isso é justo, papai?
— Nem um pouco, meu amor.
Só que o costume distrai,
e a injustiça tem cor.

Mas sua pergunta, menina,
já faz brotar rebeldia:
quem pensa, muda a rotina,
mesmo com rima vazia.

Quem sabe um dia, Florzinha,
quando for grande, então,
ninguém mais lave sozinha
a sujeira da exclusão?

terça-feira, 27 de maio de 2025

Vermes de gravata

Vermes de Gravata
(um poema para quem ainda crê na palavra)

No pódio da infâmia sobem sorrindo,
Hitler à frente, já prevenindo
o que viria com tanto esmero:
Mussolini, Milei, Bolsonaro — o zero.

Netanyahu reza bomba em escola,
Trump bate palma, a verdade se enrola.
Meloni costura com linha fascista,
Orbán fecha a porta e rasga a pista.

Bukele vigia com olhar de Big Brother,
Zemmour recita o ódio do outro.
Farage, Le Pen — versão detergente:
“limpeza étnica”, mas dita “gente”.

E surge Musk, num foguete dourado,
vendendo o céu, pisando o legado.
Faz da liberdade uma ação na bolsa
e empacota o mundo numa “graciosa” bolsa.

São muitos nomes, a mesma ração:
ignoram cultura, ciência, razão.
Desprezam respeito, pisam na escola,
vendem justiça, embrulham e embolam.

Humanismo? Pra eles é praga.
Verdade? Só a que o algoritmo propaga.
Igualdade? Só se for de mercado.
E quem pensa diferente é cancelado.

Mas eis que o povo, o tal “cidadão”,
que sonha com ordem, mas ama a prisão,
aplaude, vota, marcha, delira —
com quem o despreza e depois o retira.

Será burrice? Falta de estudo?
Ou pacto assinado com algum deus mudo?
Talvez um combo: ignorância e maldade,
com molho de medo e falsidade.

E nós? Poetas, loucos, ateus e artistas,
seguimos a gritar em pistas mistas.
Porque a palavra, mesmo cansada, resiste —
na contramão dos vermes que ainda existem.

Vermes de gravata (curto)

Vermes de Gravata

Hitler sorri no retrato gasto,
Mussolini acena do mesmo pasto.
Trump, Milei, Bolsonaro, Meloni,
vestem de novo o velho demônio.

Netanyahu reza com míssil na mão,
Orbán censura, Bukele vigia,
Le Pen promete “proteção”,
mas só pra quem pensa igual à família.

Zemmour, Farage, o tom é o mesmo:
ódio embrulhado num nacionalismo a esmo.
E Musk? Vendendo o céu a prazo,
enquanto a terra apodrece em seu atraso.

Educação, cultura, ciência, respeito…
são palavrões no dicionário estreito.
E o povo, perdido, bate continência
a quem transforma medo em conveniência.

Burrice? Maldade? Ignorância em bloco?
Ou um coquetel que nos leva ao sufoco?

Poetas gritam, artistas resistem.
Enquanto esses vermes ainda persistem.

O bicho homem

O bicho homem 

Tudo começou com pedra e pontaria,
na pré-história da anatomia.
Era caça, era fome, era instinto,
ninguém falava em “pecado” ou “extinto”.

Aí veio o arco, a flecha, a mira,
mais proteína, menos mentira.
Matava-se bicho, e não opinião,
ninguém explodia por religião.

Mas bastou o bronze, bastou o ferro,
e o homem fez do irmão seu desterro.
Inventou a guerra, a espada, o escudo,
e esqueceu o gosto do fruto maduro.

A pólvora, então, soprou da China,
fez do monge um franco-atirador na esquina.
Mosquetes, canhões e cruzadas loucas —
por um “amém”, cabeças ocas.

No XIX, metralha e repetição,
a fábrica virou confissão.
No XX, com tanques e bombas nucleares,
fez da Terra um lote de bazares.

Hoje, com drone, com chip, com senha,
a bala pensa e a bomba desenha.
Islamista mata desenhista, sem remorso,
por Alá — ou pelo ócio. Que esforço!

Judeu mata islamista, com razão herdada,
com Tanakh, com drone, com bala guiada.
E o ciclo gira, gira e se repete,
com fé, com farsa, com internet.

Tudo por terra, mulher, bandeira,
por um pedaço de chão ou de besteira.
E os crentes, de Bíblia ou Alcorão,
bradam pelo porte como se fosse salvação.

Ô bicho burro! Com tudo que sabe,
ainda se esconde atrás de uma labe.
Tem chip na mão, inteligência na nuvem,
mas não aprendeu que matar não é virtude.

Acha que é raça, é povo eleito,
mas fede a sangue, rancor e despeito.
E assim, armado, crente e confuso,
vai escrevendo o fim… com cartucho incluso.

sexta-feira, 23 de maio de 2025

Os sete haïkus

Os sete haïkus 

Haïcuzinho

Peitos que brilham,
Pezinhos mágicos dançam,
Bocarra sussurra.

Goza!

Bunda gostosa
cavalga sem piedade
ela esguicha, grita!

27%

Verdinho acende,
sativa dança no ar,
verso se revela.


Contrafilé

Sangue na língua
O bife exala calor
Renova a vida!

Dolce Italia!

Tiramisù treme
na colher que beija a boca
delírio se dá.

32%

Verdinho suave,
índica embala o sossego,
no tempo, repouso.

Desde 1921

Peito sagrado,
cinco estrelas brilham sol —
azul imortal.

quinta-feira, 22 de maio de 2025

(L)ouvado (S)eja (D)eus

(L)ouvado (S)eja (D)eus

O trem invade o útero da manhã,
lisérgico o doce, pulsa no escuro,
a lua lambe o sexo balzaquiana,
coxas abertas num convite obscuro.
Torto viril, meu grito mais impuro
esguicha entre dentes e porcelana.
Na língua, um beijo de fogo e lama,
no ventre, um espelho que não perdoa.
Cada gozo é relâmpago que ressoa,
rasga o real, e a razão se derrama.

Tankaqui

Tankaqui

Xoxota cabeluda
goteja azul, latejando,
minha alma enlouda.
Pezinhos de unhas vermelhas
masturbam minhas orelhas.

Surreaneto lambuzado

Surreaneto lambuzado 

Sorvete de banana entre as coxas dela,
derrete em silêncio, impudico e febril,
Luma de Oliveira, deusa paralela,
sorri como um vício dourado e infantil.

No kart do tesão ela voa em fumaça,
seios em flor, primavera selvagem,
a maconha estala, o tempo se enlaça,
língua e vulcão numa mesma linguagem.

Os pneus gritam versos no asfalto molhado,
o mundo evapora em aroma de gozo,
Luma cavalga o instante alucinado

com olhar de pecado e beijo venoso.
O piloto, feito louco, com a boca entreaberta,
degusto esse sonho que nunca desperta.

Terra rotunda est

Terra rotunda est

Mexerica eu conheci
na fila do supletivo.
Eu já meio fora de si,
ele com ar pensativo.

Nem fiz prova, nem fiquei.
Era cedo, eu já chapado.
E o que a escola não me dei,
a rua deu — bem parcelado.

Tocávamos violão,
mas com rumos diferentes:
ele fez do som missão,
eu tentava, entre acidentes.

Fui de baixo, fui de piano,
trompete, quem diria!
Nunca fui bom — não me engano —
mas a alma se perdia.

Ele, firme no dedilhar,
chôro puro, Garoto inteiro.
Eu deixava o jazz falar
numa escala sem roteiro.

Quase trinta, criei coragem,
fiz as provas de uma vez.
Peguei um voo, nova viagem:
Paris me abriu sua altivez.

Graduação, mestrado e vinho.
Lá fui aluno aplicado.
Mexerica, outro caminho:
doutorado — também em galo.

Ele veio, fez, voltou.
Nem nos vimos, veja só.
Cada um se graduou
do seu jeito, com seu nó.

Hoje a vida separou
as guitarras e os refrões.
Mas de longe ainda ecoou
nossa amizade em dois tons.

A Terra é redonda, irmão,
mas cheia de curva escondida.
E às vezes, sem previsão,
ela acerta… a nossa vida.

terça-feira, 20 de maio de 2025

Josué, o Patriota

Josué, o Patriota 

Imbrochável e fiel,
devoto de São Goodyear do anel,
seguiu os conselhos do mito genial
com cloroquina na mochila — essencial.

Montou no jetski da redenção,
rumo ao fim-do-mundo, com convicção,
pra encontrar Olavo e ouvir a verdade:
a fórmula pra salvar a liberdade.

Deu duas voltas inteiras na Terra,
cruzou oceano, deserto e serra,
e quando viu que não havia o fim,
suspeitou de um complô sem ter fim.

Parou o motor num gesto solene,
abriu a mochila com ar solitário e sereno,
tirou com fervor o objeto divino:
um pneu de scooter, modelo pequeno.

Ergueu a miniatura aos céus em ação,
pôs a mão no peito, cantou o hino com paixão,
e ao fim da última estrofe, rugiu com fervor:
“Malditos comunistas! Eis o terror!

Arredondaram a Terra, maldita trapaça!
Cadê o abismo, a borda, a desgraça?!”

E enquanto girava sem rumo e no cio,
jurava ter visto o mapa do Brasil no desvio,
e em cada onda gritava, sem qualquer razão:
“Cadê a borda?! Isso é fraude da eleição!” 


segunda-feira, 19 de maio de 2025

Sanctus Papa Futurus

Sanctus Papa Futurus


Estudo idiomas o tempo inteiro,

sou ateu, quase um missioneiro,

quem sabe um dia, por dom ou sorte,

não rola um conclave mais sem norte?


Se os tempos mudam com seu cheiro,

e o papa puder ser maconheiro,

chegarei pronto, bem consciente,

latim na boca e alma quente.

sábado, 17 de maio de 2025

Coincidência (?)

Coincidência (?)

Os remédios calavam minha alma,
nem cura traziam, só falsa calma.

Virei zumbi, sem dor, sem cor,
sem vontade, sem amor.

Até que um dia eu parei,
a mente acordou, a vida voltei.

Coincidentemente (?), as pernas vacilaram,
como quem ensaia passos que não se firmaram.

Meses depois, alma leve a sorrir,
as pernas recusaram mais de seguir.

A elocução ficou de bêbado,
sem ter bebido — estranho e súbito,
como se a mente tentasse falar,
mas a língua não conseguisse pronunciar.

Veio o diagnóstico, duro final,
cerebelo danificado, dano total.

Quatro meses em hospital,
saí mais lúcido, mente a mil.

Só bem depois, idiomas comecei a estudar,
e a fala voltou a se aprimorar.

As pernas melhoraram, leve sinal,
mas recentemente regrediram — coincidência afinal?

Enquanto o cérebro estiver a mil,
e o torto bem viril,
sigo, fiel e febril.

quinta-feira, 15 de maio de 2025

Apparentia fallunt

Apparentia fallunt

A maioria quer homem que banque,
grande, parrudo, com cara de tanque.
Bonito? Nem tanto, que isso passa,
mas que tenha grana — e nunca fracassa.

Cultura? QI? Bobagem! Coisa cansada.
Preferem alguém que pague a escapada.
Se for calvo, tudo bem,
desde que o saldo no banco vá bem.

Buscam também um bom pai de verdade,
mesmo que os filhos venham da metade.
Querem alguém que abrace a missão
de ser afeto, cuidado e proteção.

Os tais requisitos, todo mundo já viu:
que seja atencioso, não muito infantil,
carinhoso e doce no jeito de ser,
e que saiba, na cama, o que deve fazer.

Mas ela não era do time comum,
gostava de charme, de algo incomum.
Não quis um armário com músculos mil,
quis um que a olhasse além do perfil.

Ele era baixinho, magrelo, elegante,
com voz de veludo, olhar penetrante.
Andava com apoio, passos bambos no chão,
mas sem barulhinho — só discreta emoção.

Não tinha casa no campo, nem grana no cofre,
mas tinha bom gosto, conversa que sofre.
Sabia da vida, da arte, do som,
e um tempero na cozinha que dava um bom tom.

Cumpria o pacote dos quesitos sagrados,
aqueles que deixam corações acelerados:
gentil, respeitoso, com toque sutil
e talento escondido num torto viril.

Ser bom pai? Era. Mas isso nem veio
no topo da lista, no início do enredo.

Só que ela quis, logo ao primeiro jantar,
saber do seu rumo, de onde veio o andar…
Ele, sincero, contou resumido,
mas foi o bastante — e tudo foi ido.

Assustou-se com traços da vida vivida,
com dores, com perdas, com luta sofrida.
Achou que era drama demais pra lidar,
e foi embora sem sequer provar.

Do beijo prometido, do toque febril,
dos segredos quentes do torto viril.
Estava bom demais pra ser realidade,
e ela fugiu — por pura ansiedade.

Mas fazer o quê? Medo é vilão,
e ela fugiu do que mexe o chão.
Preferiu um pacote bem previsível,
com selfie no espelho e papo risível.

Ele, tranquilo, seguiu seu caminho,
com afeto, saber, sem precisar de vizinho.
E o talento guardado, sem causar alarido,
segue reservado pra quem faz sentido.

Porque o mundo é grande e, no seu quadril,
ainda há quem deseje o torto viril.

terça-feira, 13 de maio de 2025

Veritas Femina Est

Veritas Femina Est

Ah, essas deusas tão reais,
gente comum, mas geniais,
com graça, fogo e ternura,
clareiam nossa loucura.

Com afeto e lucidez,
sabem mais do que o que se vê,
misturam arte e tesão,
sabedoria e paixão.

Num mundo sob o comando
de um deus falso, fabricado,
são elas que fazem valer
o milagre de viver.

Graças às Deusas!

Tempus Renascentiae

Tempus Renascentiae

O homem bebia.
Desde os doze, talvez antes,
como quem aprende a escrever:
um gole, uma letra,
um trago, uma sílaba de gozo.
Bebia com os amigos
(com amigos se bebe),
bebia com as panelas fumegantes,
com o sexo suado,
com a música aos berros,
com os livros cheios de sombras,
com o trabalho febril de criar.
Bebia até com a solidão —
e ela, a solidão, virava companhia.

Trinta anos de goles.
Não era vício, dizia —
era sabor.
O álcool era o azeite das engrenagens,
o sol do domingo,
o beijo que molha o verso.

Mas um dia, o copo ficou na mesa.
Não por nojo, nem por fé,
mas por desamor do cérebro,
e amor por alguém.
Foi parando de beber
como se vai morrendo por dentro.
E parando de gostar.
Primeiro o riso, depois o bife,
depois a palavra.
A mulher da vida foi embora
e levou com ela
o último suspiro da alegria.

Vieram os doutores.
Receitaram cápsulas,
exorcismos químicos
contra o que chamavam de abstinência.
Mas os remédios criaram um zumbi:
olhos de vidro, mãos de algodão,
um pai tentando ser pai
na névoa de calmantes.
Só os filhos,
os quatro eternos sóis,
ainda aqueciam um canto da alma.

Ele dormiu por anos,
acordado.
O mundo era um filme sem cor
e sem som.

Até que um dia,
de tão cansado de não sentir,
abandonou os frascos e os jalecos.
Saiu à rua com sede —
não de álcool,
mas de qualquer gosto que lembrasse
que era vivo.

E foi provando:
o aroma do café quente,
o riso solto dos filhos,
o sopro de uma canção antiga,
o goulash feito com mãos próprias.
E mesmo quando a vida
lhe arrancou o primogênito
(e arrancou com os dentes),
ele não tombou.

Hoje caminha
sem muletas químicas,
sem a bengala dos bares.
Caminha, e sorri.
Come, ouve, ama, escreve.
E descobre, enfim,
que o prazer é um bicho
que sabe viver melhor
sem álcool no sangue
ou fantasmas na mente.

O homem se curou.