sexta-feira, 1 de agosto de 2025

運命の笑顔 (Unmei no Egao)

運命の笑顔
(Unmei no Egao)

beldade Zarzis  

coração em ereção  

sozinha prenha

quarta-feira, 30 de julho de 2025

Prece ao Senhor

Prece ao Senhor
(para declamar quando achar que está meio perdide)

Bom Senso que sois o único senhor,
que estás na essência,
sofisticado (ou não…) seja o vosso meme.
Venha a nós o vosso lema,
seja feita a vossa vontade,
assim no lar como no bar.

O riso nosso de cada dia nos dai hoje,
ajudai-nos a evitar as nossas ofensas,
assim como nós evitamos
quem nos tem ofendido.

E, por favor,
selecionai-nos as tentações —
porque “todas é” exagero,
e as melhores dão sentido ao caminho.

Guiai-nos, enfim,
sempre ao bem.

Hey man!

Nucleus Essentiae

Nucleus Essentiae

No centro da fruta, um caroço severo,
no centro do mundo, um pânico sincero.
Chamam de núcleo — palavra elegante
pra esconder a bomba no peito do amante.

Núcleo familiar? Um lar ou estopim.
Ninguém sabe ao certo onde acaba ou começa o fim.
Na célula, dança de DNA e mitose,
que às vezes vira câncer — uma apoteose.

Núcleo urbano: buzina e concreto.
No fundo, um sertão cercado de afeto.
Núcleo duro, núcleo gestor,
núcleo do medo, do ódio, do amor.

E o núcleo atômico, tão disciplinado,
segura a catástrofe com sorriso fechado.
Mas aí vem Chernobyl, vem Fukushima,
o núcleo vaza — e tudo contamina.

Veio Hiroshima, Nagasaki também,
só pra lembrar que o homem faz bem
em brincar de deus (fou-deus!) com seu dedinho torto,
plantando no chão o brilho do morto.

No núcleo da ideia há sempre uma falha,
um ruído, um eco, uma navalha.
E o essencial, dizem, é invisível ao olho,
mas fede a silício, a urânio, a orgulho.

No fim, talvez a essência nem tenha miolo,
apenas casca, verniz e consolo.
E o núcleo da essência, se é que há,
é só esse susto que insiste em ficar.

segunda-feira, 28 de julho de 2025

Soneto do Ápice

Soneto do Ápice 

Subi, não pelos pés, mas pelo assombro,
deixando o mar, a curva e sua espira.
O mundo ia sumindo, tom por tom,
e o peito, prestissimo, já se batia.

Eu ia empolgado — e era sincero —,
mas nada preparava o que se avista.
Nos jardins da Cimbrone, o instante é zero,
e tudo em volta torna-se conquista.

No mirante, parado, sem defesa,
chorei como quem nasce ou se despede.
Não sei se foi milagre ou sutileza,

mas tudo ali me fez cair a rede.
Nos jardins suspensos da leveza,
renasci? Talvez. Ou fui à minha sede.

domingo, 27 de julho de 2025

Coisinha

Coisinha

Inconsciente é bicho que não dorme,
mas age escondido, sem ter patrão.
No escuro do eu, dita o tom e a forma,
ri da razão como um bom charlatão.

Complexo de Édipo — drama e novela —
te amo, mamãe, mas ouço o sinal.
O desejo caminha em passarela
entre o afeto e o limite ritual.

Repressão: meu hábito mais discreto.
Não nego o que sinto — só dou espaço.
A vontade se esconde, não por veto,
mas pra dançar depois, no seu compasso.

Sublimação: pinto o nu que acende.
Desejo se escreve em verso e desenho.
O fogo transforma, e a arte entende
que o que era impulso, agora é empenho.

Transferência: dou amor a quem ouve.
Mas vejo no outro o que mora em mim.
Não é ilusão — é ponte que move
o que antes fluía sem ter um fim.

Ordens simbólica, imaginária e real —
três jeitos de ser e se perceber.
Na primeira, eu falo; na segunda, ideal;
na terceira, o mundo vem me escrever.

Estádio do Espelho: vi quem nascia.
A imagem brilhava: um eu possível.
Não era mentira, era poesia —
um rosto em processo, sutil, visível.

Nome-do-Pai é a Lei dita com eco:
“Desejar, sim, mas com forma e medida”.
Não freia, não corta — desenha um beco
pra que o desejo encontre sua saída.

Objeto a: coisinha sem sentido,
mas que, sem ter nome, me nomeia inteiro.
É falta criativa, brilho contido,
ponto de fuga do meu verdadeiro.

Falo — não só o órgão (fica claro!) —
mas o eixo, o traço, a rede, o sinal.
É símbolo vivo, jamais mero amparo,
tecendo sentidos no campo verbal.

Por isso sempre digo, entre tropeços,
na língua em que eu danço, sonho e embalo:
“às vezes falo com’eu penso…” — avessos,
às vezes penso co’meu falo.” — e me exalo.

Por isso…

sexta-feira, 25 de julho de 2025

De bom alvitre

De bom alvitre

No escaninho escuro da memória,
repousam fainas de um tempo esquisito,
alvíssaras de um mundo mais bonito,
que a vida — risonha — risca da história.

Um pão, diziam, era o molecote,
que em sonho ousado, quixotesco ardor,
flertava a moça — sua bela-flor —
riscando o chão batido do seu lote.

Estar nas tintas era o seu ofício,
pintava o tédio com requinte e brilho,
sem dar um cavaco ao próprio juízo,
— estar nas pampas já era seu trilho.

E o mundo, pasmo, ouvia seu alvitre:
“Desprezem tudo, até mesmo o sublime.
Quem sonha alto não passa de um alpiste,
num céu que engole os quixotes do crime.”

quinta-feira, 24 de julho de 2025

Salmo 8 (tentação)

Salmo 8
(tentação)

deus bate ponto no relógio da ilusão.
tão sagrado quanto um truque de salão,
vende pecado à prestação,
com juros altos na salvação.

fé cega, vaca atolada,
num brejo de orações mal passadas,
onde alma é moeda de troca
e amor… é só fachada.

orar virou senha de acesso,
ritual por comando de voz.
mas já no berço da areia e da pedra
fitna dançava entre nós.

satanás trocava nomes nas fronteiras,
shaytan e yetzer hara jogavam dados,
na tenda, um velho vendia tawba
em papiro de pecados reciclados.

chegavam caravanas do arrependimento,
maghfira entre tâmaras e preces.
na esquina, um escriba vendia kapará,
em latim, hebraico, e muitas vezes.

jahannam ardia antes do fósforo,
chet se confundia com lei.
o templo lavava as mãos de tudo,
enquanto o povo… dizia amém.

aveirah tingia a túnica do rei,
o sacerdote colhia avon com luva.
um bode expiatório subia a colina,
sem saber o que era teshuvá.

o bem e o mal jogavam gamão,
na sombra do juízo final.
a punição sempre pronta,
o perdão… bem, opcional.

“quando um otário nasce, um esperto vem ao mundo” —
dizem. mas a conta nunca fechou.
porque desde os primeiros gritos de fogo,
tem muito mais otário,
e o esperto…
foi quem criou deus à sua imagem e semelhança.

Amém 

Previsão: poesia instável

Previsão: poesia instável

Cirrus no céu: linha fina, elegante,
como verso de moça que sonha distante.
Altostratus pesa, grisáceo e sisudo,
um burocrata do tempo, calado de tudo.

Altocumulus — bolhas num mar de algodão,
coçaram a pele do velho Platão.
Nimbostratus, com cara de quem quer chover,
é nuvem com crise, sem saber o que ser.

Stratocumulus, vai, empurra, remenda,
parece reunião de pauta que não se entenda.
Cumulus? Ingênuo. Tão branco, tão bobo.
É nuvem criança correndo no lombo.

E o Cumulonimbus? Ameaça que encanta:
tem raio, trovão e uma alma flamenca.
Mammatus, bolsinha pendente, tão bela,
nuvem com seios — diria a Donatella.

Lenticularis paira feito nave mãe:
ETs em visita, mas ninguém vem.
Noctilucent! Ah, tu brilha no pólo —
poema noturno, vestido de solo.

E então os Contrails, suando os motores,
riscando o azul com sabores de dores.
São nuvens ou rastros? Pergunta maldita.
“É complô!”, grita o tio. A tia acredita.

Diz o poeta: “é vapor, é metáfora…”
Mas rima com medo, censura e discórdia.
Nas nuvens há de tudo: ciência, delírio.
E às vezes um gozo de céu tão etéreo.

No fim, toda nuvem é só tentativa
de desenhar o que passa — e ainda duvida.
Porque entre um nome e outro que o clima enfileira,
há sempre uma nuvem que falta na esteira.

E como diria Leminski, em leve desdém:
“nuvem é nuvem, mas sempre vem.”

A Balbúrdia do Cabrobró

A Balbúrdia do Cabrobró

Num convescote à beira do rebuliço,
chegou a patota — um séquito esquisito —
trazendo bufunfa, discurso postiço,
e um trambolho escondido num apito.

Falavam bulhufas com ar de acadêmico,
sopravam lorotas num tom hermenêutico,
um chá de lírio num brinde apoteótico,
rindo de si com desdém anestésico.

O quiprocó surgiu por uma migalha:
— Quem levou a ambrósia? — Foi você!
Ou talvez foi a sombra duma canalha
dançando no muquifo um cabrobró-pé.

Veio a bordoada — e num faniquito,
a musa tombou, sem mais cerebelo.
Restou só seu ânima, trêmulo e aflito,
catando seu canto sob o chinelo.

O sujeito, supimpa, mas meio lorpa,
cuspiu seu desgosto: — “Isso é quimera!”
Chamou de canalha quem chamava de corpa,
com voz tão rígida que secou a primavera.

Larica bateu: sardinha com goiabada.
A conversa azedou, virou tropel.
— “Democracia?” — “Besteira engarrafada!”
E o verso fugiu por debaixo do véu.

Agora o silêncio, paz pós-turbilhão,
nasce em mim como febre ou como nó.
Mas vibra — nervoso — em tom de negação:
tudo acaba num riso de cabrobró.

quarta-feira, 23 de julho de 2025

Ratucultracon

Ratucultracon

Não era só flor nos cabelos,
nem amor livre em San Francisco.
Era riscar mapas e modelos
num mundo blindado de arisco.

Theodore Roszak avisou:
“vem vindo aí o contra o sim”.
Mas o sistema logo engoliu
o grito punk no manequim.

Timothy Leary, de ácido e luz,
disse: “desconecte, repense, reluz.”
Hoje é coach com slides no telão
vendendo o mesmo sermão.

Jack Herer e a santa cannabis,
hoje em potes com QR code.
Angela Davis? Camiseta hype.
Revolta virou dress code.

Ginsberg ainda uiva na estante
ao lado de Bukowski e Kerouac,
mas há quem leia e ache elegante
a dor vendida em paperback.

Gil e Caetano, com sincretismo,
plantaram arte em chão careta.
Mas quantos ouvem tropicalismo
sem perceber a borboleta?

Yoko, Angela, Leary, Ginsberg,
teciam mundos alternativos.
Hoje são gifs — memes, zíper,
camuflados em feeds passivos.

A contracultura não é um look,
nem festival, nem TikTok.
É negar a pose, o truque,
é chutar o chão do próprio rock.

É ferida, não tatuagem.
É silêncio que desafina.
É beijo fora da linguagem.
É estrada sem vitrina.

E pra engendrar contracultura
é preciso comer sua gordura,
espremer sentido da fissura
sem esperar moldura.

Kerouac, me ouve?

Kerouac, me ouve?

contracultura
não é sticker vintage
na traseira do SUV

é ginsberg uivando
com o cu apertado de medo
num país livre

é timothy leary
pedindo carona à própria mente
com ácido e sem GPS

é jack herer —
erva na mão,
fome no peito,
esperando justiça onde só chega spray

é gil no exílio,
caetano entalado na garganta da embaixada,
não no Spotify do brunch

é yoko
gritando num museu
enquanto o curador pede silêncio

é angela davis
presa — não postada —
sendo negra, mulher e faca

contracultura
não é filtro,
é falha

não é rebeldia de caderno
é viver errado
com convicção

é não virar camiseta
nem linha editorial

é cuspir
onde querem que você assine

e ainda assim
assinar —
mas com sangue,
não com like.

terça-feira, 22 de julho de 2025

Tres Genera Ignorantium

Tres Genera Ignorantium

Há os que nunca souberam ler
porque o tempo era outro, e duro.
Saber, ali, era luxo a temer,
fome não espera o futuro.

Gente boa, que o mundo não quis,
e ainda sorri com o pouco que tem.
Perdeu o bonde, perdeu o giz —
mas nunca perdeu o bem.

Depois tem os que escolheram não crer
em livro, ciência ou razão.
Preferem o mito, o simples dizer,
um eco no lugar da visão.

É quase um alívio, confesso,
essa recusa, esse véu de sossego.
Pois o saber, nas mãos de excesso,
é faca que corta sem medo.

E por fim, há os que não vão além
porque o corpo limita o pensar.
Não é maldade, não é desdém,
é um teto que não vai quebrar.

Mas o mundo gira e se engana,
e os três, tão distintos na essência,
acabam na mesma varanda,
tomando lição de aparência.

É que há quem saiba demais — e torça
cada vírgula a seu favor.
Não erra, mente com força,
e ainda se pinta de amor.

Esse é o tipo mais perigoso:
sabe tudo, e usa o saber.
E os três tipos — o triste, o ocioso,
e o que não pode — correm pra ver.

quinta-feira, 17 de julho de 2025

Carnudinha rosada

Carnudinha rosada 

Te retirei, amor, da geladeira,
a carne em repouso, quase inteira,
seus sucos dormiam em nostalgia,
mas eu sabia — era o dia.

Fica ali, nua e rosada,
filé mignon de carne encantada,
1 quilo e um pouco mais de tentação,
deitada sobre a minha paixão.

Misturei, sem pressa, o feitiço:
2 colheres de azeite maciço,
2 dentes de alho bem amassados,
e mostarda Dijon — beijos passados.

Tomilho fresco, 1 colher sutil,
alecrim picado, do jardim febril,
saltei o sal com dedo profano,
e pimenta moída com gesto insano.

Te esfreguei — sim, sem pudor —
com as mãos cheias de sabor,
na carne espalhei minha intenção,
com tomilho e mostarda em combustão.

Na frigideira o calor se deu,
com azeite e desejo, o fogo cresceu.
Te selei, carnudinha, com devoção,
2 a 3 minutos em cada posição.

Você gemia em crepitar sutil,
selada em fogo alto, amor febril.
Seus sucos trancados no meu querer,
rosada, quente, pronta a ceder.

Ao forno te levo, 200 graus no termômetro,
termóstato 6-7, entre a carne e o centro,
20 a 30 minutos de espera aflita —
meu coração cozinha, a alma grita.

Te kiss malpassada, leve e suada,
a 50 graus, sua carne encantada.
Te retirei enfim, do forno em brasas,
e embrulhei seu corpo em papel de asas.

Descansou amor, 15 minutos no véu,
a carne, sossegada, voltou ao céu.
Te cortei então em medalhões de afeto,
1 cm de espessura, prazer discreto.

Te apertei — ah, carnudinha — sem dor,
macia estava, rosada em ardor.
Te servi com quentes batatas e vinho,
molho de roquefort, toque indecente.

Deglacei a frigideira do pecado,
com vinho tinto e um caldo ousado.
E ali, na mesa, foi oração,
carnudinha rosada, em adoração.

Seu gosto ficou na minha memória,
como um poema — quente — de nossa história.

quarta-feira, 16 de julho de 2025

Superabundantia

Superabundantia

Subi pra cima num passo torto,
fingi ter norte, fingi de morto.
Desci pra baixo, busquei razão,
achei descaso, perdi a mão.

Entrei pra dentro com fé no verbo,
tudo tão claro… mas meio acerbo.
Saí pra fora num grito mudo,
conviver junto? Já deu de tudo.

Mais melhor era o nosso afeto,
todo enrolado, mas tão direto.
Repeti novamente a tal verdade:
certeza absoluta é só vaidade.

E o elo de ligação, tão forte,
virou ruído, virou transporte
de frase feita, de pensamento
que só caminha quando está lento.

E assim, com rima meio à toa,
a lógica cai, a língua voa,
e o mundo gira como provou:

Tem, mas acabou.

terça-feira, 15 de julho de 2025

Levanta-me

Levante-me!

Começa-se com
200 gramas de biscoito champanhe,
durinhos como mamilos arrepiados.
Reserve.

Em outra tigela,
duas vontades se separam:
gemas e claras —
como carne e alma,
como o desejo e o gesto, às vezes.

Bate-se as gemas com ½ xícara de açúcar
(como quem escreve uma carta longa e suada)
por três minutos, ou até virar creme claro,
daqueles que lembram o sol entre os lençóis.

250 gramas de mascarpone
vêm depois,
feito corpo que se oferece sem perguntas.
Misture,
até que o homogêneo nos confunda.

Agora, as claras.
Bata com uma pitada de sal,
com cuidado,
com desejo contido.
Elas subirão em picos —
firmes, mas delicados,
como arrepio bem guiado.

Incorpore-as ao creme
sem pressa,
com espátula e paciência.
Não quebre o ar.
Não quebre o encanto.

Num prato raso,
misture 1 xícara de café frio
com duas colheres de Amaretto (pra um pouco mais de pecado).
Molhe os biscoitos —
rápido, como beijo roubado.
Eles não devem se entregar de vez.

No fundo de um refratário
(20 por 20, ou o que couber na sua fome),
faça a primeira camada:
biscoito.
Depois, uma camada de creme.
Repita.
Repita.
Até não haver mais escolha
além do fim.

Cubra.
Leve à geladeira.
4 horas, pelo menos.
Ou deixe a noite passar
com seus ruídos de saliva e espera.

Na hora de servir,
um toque final:
cacau em pó polvilhado
pela peneira do desejo.

Sirva gelado.
Com olhos fechados.
E alguém disposto
a lamber os cantos do prato
com gosto.


Receita Fetiche

Receita fetiche

Pegue 800 gramas de alcatra,
corte em cubos, sem mantra.
Que a vida não vem com receita,
mas às vezes, a carne é perfeita.

Três cebolas grandes, chore sem pudor,
são lágrimas doces — não é amor.
Dois dentes de alho na dança entrarão,
e os cheiros antigos logo despertarão.

Duas colheres de páprica doce,
me disseram que ardor é fofo se trouxe.
Uma de páprica picante também,
pra lembrar que a doçura às vezes faz bem.

Cominho? Uma colher de chá.
Nem sei o porquê, mas deixe lá.
É o toque sutil do desconhecido,
aquele gosto que vem quando menos sentido.

Quatro batatas, em cubos, chegarão,
no fim do processo, elas se juntarão.
Quinhentos de caldo de carne quente,
banha os pedaços — tudo envolvente.

Duas folhas de louro, enfeitadas,
como cartas velhas não enviadas.
Três colheres de azeite, calor que não mente,
o amor cozinha mais lentamente.

Sal e pimenta, a gosto — cuidado!
Que o excesso pode ser pecado.
Salsinha picada, só no final,
pra fingir que o prato é saudável e tal.

Cozinha em silêncio, fogo discreto,
um verso mexido, um tempo correto.
Com pão ao lado e fome no olhar,
sirva com afeto, sem precisar explicar.

Mas se for brindar, que seja direito,
nada de espuma com gosto suspeito.
Cerveja de rótulo triste, sem fé?
Dispense. Recuse! Se for da AMBEV, não é.

A Grande Esfera do Destino

A Grande Esfera do Destino

Em um vilarejo enclausurado por cogumelos gigantes que pulsavam luz ao menor toque e cilindros de borracha erguidos como colunas de um templo estranho, vivia uma comunidade que, à sua maneira, conhecia a harmonia.

Chamavam-se Termieten. Não por escolha — mas por natureza.

A sociedade era rígida e perfeita. Uma monarquia sem soberano. Havia um rei, uma rainha — mas nenhum deles governava. Eram símbolos vivos, repositórios da experiência ancestral. A comunidade funcionava como um organismo. Operários, soldados, reprodutores — cada casta sabia seu papel. Ninguém mandava. Ninguém desobedecia. Todos trabalhavam para o bem comum. Havia ordem, e nisso, paz.

Falava-se ainda dos alados — uma casta mítica, de membros raros, com asas delicadas e destino incerto. De tempos em tempos, um ou outro alado partia em busca de terras mais férteis, menos barulhentas, onde talvez a Esfera não alcançasse. Nenhum jamais voltava.

Apesar de não haver chefe, castigo ou coerção, havia uma única regra — não escrita, mas inquestionável — que todos seguiam como se fosse lei ancestral:
Jamais subir ao além entre dez da manhã e meia-noite.
Não por medo. Mas por sabedoria. Contava-se que, se algum Termieten ousasse subir durante o tempo da Esfera, mesmo que voltasse ileso, toda a comunidade sucumbiria em poucas horas, sufocada por uma força invisível, incompreensível, letal.

Foi então que Feline — embora seu nome oficial fosse Emma, como tantas outras — cedeu à dúvida. Curiosa, audaciosa, exausta da rotina, cansada da serragem e da obediência, decidiu que ver a Esfera de perto era mais importante que qualquer aviso.

Feline estava no fim da adolescência, aquela fase em que o mundo parece mais estreito do que realmente é. Era rebelde, inconformada. E naquela sexta-feira, por volta das sete e quarenta da noite, subiu ao além — ainda sob efeito da serragem fermentada, que havia exagerado na noite anterior. A cabeça girava, mas os olhos ardiam com excitação e o coração batia como nunca antes.

No além, tudo era luz e caos. A Esfera rugia, batia, ricocheteava. As plantas gritavam, os cogumelos pulsavam em estalos de luz. O chão tremia, vibrava.

E então ela viu: um monstro colossal, de braços estendidos — como se os usasse para controlar o universo — olhos vidrados, tentava evitar que a Grande Esfera do Destino caísse no limbo. Quando falhava, o titã ativava um dispositivo que lançava outra esfera no além, reiniciando o ciclo. Era uma dança frenética, absurda, sem sentido aparente — e ainda assim, hipnotizante.

Feline se escondeu, observou, e depois desceu.
Ilesa.

Ninguém soube.
“Lorota do rei”, pensou.
E dormiu.

Dois dias depois, o ar mudou.

Primeiro, um incômodo leve, quase imperceptível. Depois, a opressão. Os soldados desmaiavam. Os operários erravam seus turnos. A rainha silenciou. Os últimos alados tentaram levantar voo — mas o ar já não sustentava mais nada.

Um a um, os Termieten tombaram.

Feline, a última, rastejou até o centro do vilarejo. Olhou para cima, tentando respirar. Sentiu o peso do além sobre o peito. E então, caiu.

A máquina continuou a piscar.
Ela só para de meia-noite até as dez da manhã.

E os clientes fumavam, conversavam, riam, enquanto a Grande Esfera do Destino seguia seu curso, incansável, lançada de um lado a outro dentro de um velho fliperama, num coffee shop em Amsterdã.

Tilt.

domingo, 13 de julho de 2025

Dominica magicum

Dominica magicum

Domingo azul. A tarde, um pano leve,
bailava em sete tempos, desconcerto.
No parque, o som — quarteto — vinha aberto,
e a brisa dava tom à vida breve.

Improvisava o céu, num quase outono,
as nuvens riam jazz por entre os galhos.
Verdinho do bom — sossego entre os trabalhos —
soprava um mundo em paz, sem dono ou trono.

No Parc Floral, seus olhos — meus amores —
tinham o brilho exato da manhã.
Palavras? Não. Bastava-me o fulgor.

Ficou no tempo esse acorde de flores,
um compasso guardado em hortelã,
só ouvido por quem escuta amor.

Iaponicus-Romanus

Iaponicus-Romanus

Fulget caeruleum

Anima tactu tremit

Mulier gemit 



*O azul fulgura
A alma treme ao toque
A mulher geme

sábado, 12 de julho de 2025

Collegae laboris

Collegae laboris

Mbappé voa.
Henrique (Dourado) cabeceia.
Ambos jogadores,
mas só um joga.

Matuê solta beat,
Nelson Freire segura o tempo com os dedos.
Ambos músicos —
um com autotune,
o outro com a eternidade.

E no fim,
o Matuê tem mais dinheiro,
mais views,
mais gritos.

É como se Henrique Dourado
fosse mais celebrado
e mais bem pago
do que o Mbappé.

E a gente finge 
que isso faz sentido.

Sabbatum magicum

Sabbatum magicum

Azul derrama-se em silêncio
sobre o parque que respira devagar.
Nada começa nem termina,
só se move.

A nana formosa ao lado sorri,
suas auréolas rebeldes
parecem reagir à vibração de Ravel
ou talvez ao feromônio que exalo…

Aloe vera gelado,
frescor vegetal que percorre por dentro
e inventa caminhos novos,
o torto num crescendo inevitável!

O ar é floral,
não por metáfora —
por simples evidência.

Sativa sopra ideias em espirais,
a grama escuta tudo,
e os corpos se permitem
uma pausa sem culpa.

Cordas em sussurro,
piano em gotas de âmbar,
harmonia em delírio solar,
a dança escapa leve,
num compasso que dissolve o tempo.

Festival de olhares,
de tempo frouxo,
e de instantes
que não pedem legenda.

quinta-feira, 10 de julho de 2025

Fritz o gato

Fritz o gato

Fritz não é pet, é outro tipo de ser —
colocataire que só sabe acolher.
Não paga aluguel, nem lava o chão,
mas tem seu valor: e não é de ilusão.

Tem inteligência que lembra um cão,
e um toque de gato em cada ação.
Limpo, elegante, dorme em posição
que parece ensaiada pra exposição.

É base harmônica quando repousa,
um ronronar suave que tudo acalenta.
Mas se algo o inspira, em plena ousadia,
solta um miado — jazz na melodia.

É cão no afeto, sem baba, sem cheiro,
me espera na porta, fiel companheiro.
Me escuta subindo, já fica a postos —
parece até dono, com olhos expostos.

Mas tem o mistério que só gato tem,
desaparece no ar, volta zen.
É leal sem grude, é livre com norte,
me dá companhia sem trancar a sorte.

Caça o que voa, o que rói, morde e não dói,  
derruba objetos com patadas educadas.  
É artista da casa, terapeuta felino,  
com alma de cão e olhar cristalino.

Dá despesa? Quase nenhuma. E se for somar,
vale cada grão que vem do jantar.
Pois onde há um Fritz, há riso, calor —
há música viva e um tanto de amor.

quarta-feira, 9 de julho de 2025

Lettre ouverte (un éclat consigné)

Lettre ouverte

(Un éclat consigné)

Cher maçon,

T’as déjà pris une seconde pour te demander comment un type comme toi — avec cette tronche, ta calvitie qui n’a jamais eu de panache, ton ventre qu’on dirait hérité d’un autre siècle, ton absence cruelle de culture et de conversation — a pu, ne serait-ce qu’un instant, croire que t’étais à la hauteur d’une femme comme elle ?

La réponse est simple : elle était désespérée.

À ce moment-là, j’étais là sans y être vraiment. Elle cherchait un peu de douceur, de réconfort, quelqu’un qui l’emmène dîner de temps en temps, qui sorte un portefeuille un peu plus rempli que ta tête. Tu lui as offert ce vernis. Elle s’en est contentée. Un temps.

Mais toi, t’as cru que t’avais décroché le gros lot…

On se connaît depuis 1995. Seize ans de vie partagée. Trois enfants. Des hauts, des bas, de vraies épreuves. Toi, t’étais une parenthèse, un faux espoir, un détour. Et malgré ça, t’as duré. Bien trop longtemps.

Et maintenant, voilà que tu t’attaques aux enfants.
Ton message, on l’a vu — merci le contrôle parental ! Manipuler les gamins pour tenter de la récupérer, c’est non seulement misérable, mais profondément lâche.

T’as franchi une ligne.

Si t’étais un peu plus que ce masque que tu portes — un peu plus qu’un décor emprunté à la maison de campagne de tes parents, aux bateaux de tes potes ou à leurs chalets bien placés — tu saurais que ce genre de manigance ne fait que tout détruire autour de toi. Et que jamais, au grand jamais, elle ne reviendra pour ça, même si cela te permet encore de les voir de temps en temps.

Alors, fais-toi un vrai cadeau pour une fois dans ta vie :
Réfléchis — même si ce n’est pas ton fort —, comprends que tes petites magouilles ne te mèneront nulle part… et recueille-toi dans ton insignifiance.

Bonne continuation.

quarta-feira, 2 de julho de 2025

Erithacus rubecula

Erithacus rubecula

Azul
como o susto nos olhos de Kongens Have às três da tarde,
quando o esquilo salta do galho para a sua lembrança.
Blotter paper — universo dobrado ao meio,
um origami de memória escandinava,
onde o verdinho não é mato,
mas suspiro de Romkugler derretido na boca.

250 μg de saudade,
via oral,
com um copo d’água lunar.
Modal: flutuação intermitente entre o delírio e a ciclovia.
27 graus na sombra do infinito, celsius.

Rosemborg não é castelo,
é órgão interno —
a resina de flor que recobre o pulmão esquerdo dos seus sonhos.

E.S.P.
três letras flutuando no ar morno da grama,
como se alguém as tivesse deixado cair de propósito,
num tempo difícil de bater.

Amarelo,
a cor que resta quando a infância evapora
na bicicletinha embaixo da língua no começo da tarde.

Azul.
Não se esqueça do azul.
Ele é a primeira palavra da sua última frase.

terça-feira, 1 de julho de 2025

Blå sommer

Blå sommer

Verão azul, suor de gelo nas costas da aurora,
o asfalto canta em dinamarquês antigo,
e wienerbrød derrete em bocas de neon,
onde os dentes sorriem em código rúnico.

Potranca de porcelana, rebola entre as frestas do fiorde,
cachos de fogo dançam tangos em catedrais de espuma,
cada espiral é um segredo escandinavo,
bordado por deuses bêbados de aquavit.

Olhos de esmeralda abrem portais nos becos de Christiania,
onde a guitarra arde com um jazz nórdico —
um lobo toca saxofone em trêmulos compassos
e as coxas da noite cruzam-se em sustenidos.

White Widow sopra seu feitiço em Katrina,
que morde as horas com língua de âmbar,
e na Rua Pusher os relógios se despem,
marcando a eternidade com seus passos, fri.

Um cão viking lambe o tempo entre as pedras,
e um barco de fumaça parte do meu peito.
Tudo é verão,
tudo é azul.

E as curvas posteriores de Katrina 
vão se diluindo em passos leves, 
até se tornarem um sussurro no horizonte.
Hej og farvel!

sábado, 28 de junho de 2025

ArTesão

ArTesão

Não tenho o dom da marreta,
da pá, do cimento, da trena.
Minha obra não é de parede —
é verbo, é verso, é cena.

Não ergo casas no chão,
mas mundos na imaginação.
Minha argamassa é palavra,
meu alicerce: a emoção.

segunda-feira, 23 de junho de 2025

Gaudia et cicatrices — vita procedit

Gaudia et cicatrices — vita procedit

Ela tem mágoa, e eu compreendo.
E talvez, por vezes, algo pior.
Não fui leve — tropecei tremendo
no que se espera de alguém maior.

Errei, e nem adianta disfarçar.
Fui ausente onde era pra ser inteiro.
Hoje, afastado, não posso amparar —
e o pior é que o problema é o dinheiro.

Sempre foi. Feriu mais nela do que em mim,
e eu via, mesmo sem saber lidar.
Mas também fui parte do que teve fim,
e do que — apesar de tudo — vai ficar.

Tenho noção do quanto desalinhei,
e do que restou torto, por distração.
Mas não renego o que a pele ofereci —
os risos, os orgasmos… a combustão.

Ela também me feriu, sem rodeios.
Ninguém sai incólume de amor profundo.
Mas o brilho venceu os devaneios,
e houve beleza no nosso segundo.

Peço e pedirei perdão sem vergonha,
com enorme gratidão no coração.
Mesmo se a mágoa nela ainda sonha,
carrego isso até meu último suspiro, então.

É amor que persiste, sem exigência
de retorno, promessa ou conciliação.
Mãe de três — vértice da minha essência —
ela reside serena no meu coração.

Perdoei meu pai — não por virtude,
mas por compreender que tudo se esgota.
Como não perdoar quem, em plenitude,
foi minha casa, mesmo em rota torta?

Só não perdoo — e não saberei jamais —
o desgraçado que, no peito, ceifou
a mãe do meu primogênito. E o que se faz
com o tipo de dor que nunca cessou?

O resto é silêncio, vida que caminha,
com cicatriz, memória e muita paz.
O que foi de verdade, a alma guarda,
mesmo quando parece que já não faço.

domingo, 22 de junho de 2025

Cancri humanitatis

Cancri humanitatis

A Terra exausta sua em febre branda,
mas o mercado alega: “É só demanda.”
Deus, nas prateleiras, vira promoção:
“Compre a Verdade e leve a Salvação!”

O câncer avança — fé metastática —,
cura-milagre, dor dogmática.
Rezando em coro, o rebanho tropeça,
crendo que o dízimo paga promessa.

Do outro lado, em ternos de Excel,
o lucro posa de anjo fiel.
Sorri, privatiza, depois terceiriza:
quem morre de fome é quem mais valoriza.

A ciência alerta: estágio I.
Mas o sistema já fede, sim.
Há sintomas visíveis, necrose fria —
o nome disso? Neoliberal mania.

A única chance, sem cirurgia,
é anarcocomunismo com naturoterapia.
E o ateísmo, calmante eficaz,
tira o delírio, devolve a paz.

O corpo é coletivo, a alma é matéria.
Ninguém se salva sozinho na miséria.
Desliga o templo, rasga o cifrão:
cura se faz com vida em comunhão.

Cancri humanitatis

Cancri humanitatis

Religião, estágio III,
lucro, estágio I —
ambos sorrindo, aqui
no caos que vai por fim.

Um vende céu por tostão,
o outro corta a razão.
Pregam ordem, plantam dor,
colhem morte e dizem “amor”.

Mas há cura, ainda que fria:
naturoterapia.
Com ateísmo e rebeldia,
anarcocomunismo é poesia.

Humanitas aegrotat

Humanitas aegrotat

O mundo tem hoje 134 fogueiras acesas,
e só 3 bombeiros — bêbados.
Há conflitos com nome e sobrenome,
e outros tão antigos
que a gente já nasce devendo explicação.

A Rússia morde a Ucrânia como quem diz
“Isso sempre foi meu!”
E o Ocidente assopra com tanques e sanções,
enquanto finge que ajuda.

No Oriente Médio, o inferno tem CEP.
Desde 1948,
Israel ocupa, expulsa, mata, segrega — e se diz vítima.
Gaza virou uma palavra proibida
nos jantares elegantes.

O Hamas atira,
Israel responde com uma avalanche.
E o mundo calcula os mortos
como se fossem boletos vencidos.

No Líbano, o Hezbollah brinca de “quem começa?”
e o Irã manda presentes com pólvora.
A Síria virou tabuleiro de War,
mas sem manual de regras.

No Iêmen, o povo morre de tudo:
de guerra, de fome,
de falta de notícia.

Na África, tem guerra civil onde nem Estado há,
no Sudão, no Sahel,
no Congo, na Etiópia —
lugares onde a esperança não tem passaporte.

Na Ásia, a China sopra no cangote de Taiwan,
a Índia encara o Paquistão de sobrancelha erguida,
e no Myanmar a democracia foi presa
sem direito a habeas corpus.

E o Haiti?
Virou sinônimo de desespero.
O México e a Colômbia,
roteiros de narcos patrocinados pela omissão.

Enquanto isso, o Estado Islâmico
é tipo cupim:
atua no mundo inteiro, mas ninguém vê de onde sai.

E as potências brincam de roleta russa,
com flertes nucleares e risadinhas geopolíticas.
Trump ressurge como ressaca,
e a ONU escreve notas de repúdio em papel reciclado.

Menos ganância, abaixo à religião!
Que deus(??) desça, se quiser,
mas sem exército.

Mais tolerância, amor,
sexo (com consentimento!),
mais arte,
mais poesia,

porque matar por uma ideia
é o cúmulo da burrice —
e morrer por ela,
é só falta de criatividade.

sexta-feira, 20 de junho de 2025

Blauer Winter

Blauer Winter

Inverno azul, céu sem sombra,
hermana ao lado, presença que alomba,
Wiener Schnitzel, o gosto do dia,
calor que aquece em doce harmonia.

O tubarão ruge, cinema vivo,
ondas de metal, som expressivo,
orquestra germana, mar em festa,
invade o espaço, não se resta.

Italiano o quarteto desliza,
Si bemol em dança precisa,
sombra que nasce da luz contida,
groove que voa na noite sentida.

No Gorlitzer o ar é verdinho,
flor que sussurra no doce caminho,
fumaça leve em tom suspenso,
silêncio verde, dia intenso.

Planeta caeruleus, panis communis

Planeta caeruleus, panis communis

Menos hierarquia,
um pouco mais de anarquia (responsável),
nem tanta tirania,
nem caos irreversável.

Nem tanto ao céu,
nem tanto ao chão,
mas onde se colha
o que se põe à mão.

Neste planeta azul,
nossa casa milenar,
tanta ordem fez-se mula
sem vontade de pensar.

Chamaram de paz o medo,
de lei, a imposição,
de futuro, um degredo,
de justiça, a opressão.

Mas surgiram vozes firmes
no rastro da ilusão:
Kropotkin com seu pão livre,
Malatesta em rebelião.

Carlo Cafiero dizia:
“Comum deve ser o pão!”
E a fome não merecia
trono, farda ou patrão.

Na Comuna, um lampejo,
na Espanha, rebeldia,
na Ucrânia, o mesmo ensejo —
viver sem tirania.

O anarcocomunismo,
com sua chama tão sã,
não clama por abismo,
mas por mesa e manhã.

Nem senhores, nem muralhas,
nem partidos de exceção,
só redes onde se valha
a troca por afeição.

Cada qual com sua força,
cada um com seu lugar,
sem diploma de polícia
pra aprender a cuidar.

Pode soar utopia,
um delírio, uma paixão,
mas do caos e da agonia
brota a flor da solução.

Camaradas, não tem truque:
ou se parte essa prisão,
ou o planeta azul desaba
em silêncio e solidão.

Pode parecer sonhar demais,
mas há lógica na razão:
o anarcocomunismo
é, sim,
a solução.

quinta-feira, 19 de junho de 2025

Crer ou não crer: eis a questão

Crer ou não crer: eis a questão 

Sou ateu desde criança,
quando acabou a esperança
de que deus fosse verdade
e não só necessidade
de quem tem medo do escuro
e precisa de um futuro.

Percebi: coelho não põe ovo,
isso é papo bobo e novo
pra vender chocolate caro
no calor do calendário.

Depois, veio o velho imundo,
barbudo e sujo do mundo,
que só dá presente a quem tem,
e pra quem não tem: desdém.
Esse porco capitalista
disfarçado de altruísta
caga na lareira alheia
se a criança for da aldeia.

E teve ainda o Pinocchio,
mais um boneco e seu ópio.
Fé de madeira barata
que o nariz logo desata.

Mas mesmo sem deus no altar,
meu coração foi buscar
um outro tipo de fé —
de carne, perfume e pés.

Pré-adolescente, inquieto,
me encantei por um amuleto:
Deusas de carne e desejo,
com olhar que vale um beijo.

Depois, já um pouco crescido,
foi o feitiço que ouvi.
Feiticeiras com sorriso
que bagunçam meu juízo
e me encantam só de rir.

Na vida adulta, as bruxas.
Algumas doces, outras brutas.
Mulheres de força e vinho,
que cruzaram meu caminho,
e, no laço que formamos,
nós nos transformamos.

E agora, com mais idade,
acredito com vontade
em fadas — sim, de verdade.
Sábias, leves, transparentes,
com poderes tão potentes,
pra erguer meu coração
e reacender minha canção.

deus? Nunca vi, nem sinal.
Mas posso provar que elas —
as Deusas, as feiticeiras,
as bruxas e as tagarelas
fadas da mais pura idade —
existem. São verdadeiras!
Carne, gozo, riso, prazer:
minha forma de crer e ser.

quarta-feira, 18 de junho de 2025

猫のフリッツ 5-7-5

猫のフリッツ 5-7-5

Fritz sous la lune,
Parfum d’herbe dans les rues…
Le miaule jazzy

Fritz le chat

Fritz le chat 

Fritz le félin rôde
Odeur d’herbe dans les codes —
La nuit, c’est son ode.



Arthur e o rap

Arthur e o Rap

Desde o berço, concertos de Brandemburgo embalavam-lhe os sonhos. Antes mesmo dos passos, vinham as palavras — claras, precoces — e, nos silêncios cúmplices entre pai e filho, desabrochavam Ligeti e Debussy. Na casa dos avós, e com a amada mãe atriz, vinham os ecos de bossa e do samba de raiz. O destino, esse velho ladrão de afetos, levou o pai por um tempo, mas não conseguiu levar o bom gosto. Arthur ouvia o que a babá chamava de música — “ela escuta música de rádio!” — e comparava com a lucidez de um pequeno crítico.

O reencontro foi como num filme que se recusa a ser triste. Com apenas três anos, ele cantou Chovendo na Roseira a capela. Vozinha angelical, afinação de espantar os anjos, expressão de velho sábio. Vieram os clubes de jazz com o pai, os papos com músicos adultos, como se fosse um deles. Começou as aulas de musicalização na Fundação e, quando a vida, cansada de separações, resolveu uni-los de vez — dessa vez na Cidade Luz —, ele mergulhou no Conservatório. Flauta doce barroca, depois violoncelo aos treze. Amava AC/DC, colecionava Mahavishnu. Era erudito e elétrico, clássico e caos.

Mas, aos quatorze, algo rompeu. Uma dor sem melodia. Quando entendeu o que acontecera com a mãe, o verbo explodiu. Os opiáceos e os “benzos” se tornaram abrigo químico — escudo contra o próprio ser. Largou os arcos, as partituras e a alegria. Abraçou o rap. Trocou a harmonia pela raiva, as notas longas pelo verbo cru. O mundo não merecia mais beleza. Não havia mais tempo para lapidar som — só urgência de cuspir palavra.

Não era música. Era sobrevivência.
Aqui jaz(z), Arthur - 03/06/2024

Sacra vetita

Sacra vetita

Muito antes da pressa e do trânsito,
a flor já florescia.
Ali por volta de 10.000 a.C.,
na Ásia que viraria China ou Mongólia,
já se colhia maconha com respeito.

Era comida,
era corda,
era papel de oração.
E quando a dor apertava,
vinha a cura:
insônia, inflamação,
desassossego —
tudo tratado com flores e serenidade.

Shen Nung, imperador e herbalista,
assinava a receita:
a flor alivia.
O tetra hidro canabidiol,
esse nome longo e honesto,
já fazia milagres antes de ser proibido.

Na Índia, virou sagrada.
O Atharva Veda a chamou de amiga.
Nos rituais, surgia no bhang,
bebida que subia suave,
acendendo a mente sem apagar o corpo.

Sitas no deserto,
inalando fumaça como quem invoca o tempo.
Na África,
era consagrada em tambores e curas.
E entre o Oriente e o Norte da África,
surgia o hax:
resina da flor,
concentrado da calma,
brasa ritual,
toque direto no pensamento.

Depois, Europa.
Idade Média,
idade da corda — de cânhamo.
Velas de navio,
camisa de camponês,
e papel onde se copiava
verso, lei e pecado.

Nas Américas, atravessou o oceano
com os colonizadores.
Foi cultivada, estudada,
e usada até por figuras ilustres
que hoje estariam presas.

No século XIX, era remédio.
Encontrada nas farmácias,
curava espasmos, acalmava mentes,
e ajudava artistas a escutar a cor azul.

Mas aí veio o século XX,
e com ele o medo.
Nos Estados Unidos,
a maconha virou alvo de racismo travestido de moral.
Campanhas, filmes toscos,
leis moldadas por preconceito e interesse.

O Marihuana Tax Act de 1937
foi mais censura que imposto.
Convenções internacionais seguiram o coro:
proibir uma planta
pra manter um sistema.

E assim,
a flor foi empurrada para a sombra,
não por seus males,
mas por sua liberdade.

Só que ela continua.
Maconha não grita.
Age em silêncio.
Aguça os cinco sentidos
— e talvez um sexto —
acalma sem apagar,
inspira sem iludir.

Afia a escuta,
desacelera o excesso,
abre espaço pra criatividade
como quem abre uma janela num quarto fechado.

Não entorpece —
desperta.

Proibir maconha é temer o que não se controla.
Manter a proibição é dar lucro a quem vende o caos.
É ignorância de terno,
ganância de farda,
e hipocrisia com bíblia na mão.

Enquanto isso,
a flor e sua resina pensam.
E quem as respeita,
pensa melhor.

Ars musicae

Ars musicae

Antes da bíblia, do grito, do verbo
já se soprava em ossos de pássaros.
Não era prece, nem pedido,
era flauta.
Aurignacianos, sem saber,
tocavam sinfonias para o escuro.

Vieram os tambores,
batucando peles e medos,
coagulando o tempo em compasso.
Veio a dança pintada em caverna,
o batuque que moveu a pedra
e a alma (se isso existia).

Muito antes do fiat lux,
já se cantava.
E talvez deus não tenha dito nada —
só assoviou um tema em modo menor.

Os neandertais, segundo consta,
tinham ritmo.
É possível que se apaixonassem
por meio de uivos sincopados.
Darwin, meio surdo, mas esperto,
achou que música servia
pra seduzir,
e não é que serve?

Bebês batem palmas sem saber por quê.
Pássaros flertam em falsete.
Gorilas dançam quando chove.
O que mais você quer como prova?

Escrevemos partituras em argila.
Inventamos escalas, ragas,
estrofes, árias e autotunes.
Platão desconfiava do tom menor.
Schopenhauer preferia Wagner.
No fundo, ambos queriam silêncio —
mas com trilha.

A música, dizem, é universal.
E é verdade:
ninguém escapa dela,
nem mesmo no elevador.

Os povos dançam, rezam, casam,
marcham, transam, enterram,
sempre ao som de algo.
Se não tem música,
o ritual é fraco, o gozo é morno,
o luto não pega.

E enquanto isso,
o maestro amigo me sopra entre goles:
“Gosto não se discute,
aprimora-se”.
E aprimoramos.

Mas uma coisa é certa:
deus não existe.
Existem as Deusas,
e a sublime, sagrada,
arte das musas.

segunda-feira, 16 de junho de 2025

SurRondel azul

SurRondel azul 

Luz Azul
Aibofobia
Radar
Amanama

Reler
Luz Azul
Amanama
Radar

Reler
Luz Azul
Amanama
Radar
Reler

A fábula mineira

A fábula mineira
(Gustavo de La Fontaine)

Em um quintal de película velha —
Preto, branco e toda a escala média —
As frangas viviam, de alma apagada,
Numa luz de projetor, tremida, gasta.

Entre elas, sombras de um cinema mudo,
Bicando o pó, o nada, o absurdo,
Com o peito cinzento, o olhar de celuloide,
Coladas ao chão como figurantes de umroid.

Eis que entra a raposa, um raio de azul vivo,
Rasgando o fotograma, tentando um desvio.
Com o pelo de um oceano na pele,
Com o passo de um prince, que ninguém repele.

Com um golpe preciso — quase um verso final —
Colheu a presa no próprio quintal.
As frangas, na falta de cor e de norte,
Foram ao banquete… e ele à sorte.

Assim a fábula revela, pelo cinza e pelo tom,
A voracidade que mora no próprio som —
De um mundo a preto e branco, de alma presa,
Onde o azul é parte, sem choque, sem surpresa.

Alexandrim

Alexandrim 


De onde o horizonte é belo e as minas gerais,

Meu peito acende mundos na pele da fala;

A língua de nascença é o peito que exala

Seu próprio barro, ouro, espinhos, e metais.


Mas a outra, o francês, nas margens do Sena,

É um espelho torto onde a voz se embala;

Com tons de ironia, a alma se revela

Na dança de Paris, luzindo na cena.


Assim vou pelo mundo, de dois mundos cheio,

Com a palavra acesa, a lâmina no peito,

Colhendo o próprio nome pelo caminho;


Meu coração, de tanto, ficou alheio,

É ele próprio a terra, o livro, o leito —

Meu canto vai florindo, espinho a espinho.

quarta-feira, 11 de junho de 2025

Disque dur

Disque dur

Deusa morena,
do sorriso que esconde safadeza e sabedoria,
do olhar que me despenca —
olhar de quem sabe e provoca,
olhar de quem ri e domina.

Seu corpo:
extremamente apetitoso.
Não há metáfora mais justa.
É sonho, é banquete,
é desejo empilhado há quase vinte anos.

Quero sua boca,
essa que diz verdades com graça,
e que eu sonho em beijar
com a sede de quem atravessou desertos.

Uma mão se perde entre seus peitinhos de menina,
e a outra, generosa e firme,
acaricia sua bunda de rainha
de escola de samba.
Ah, esse desfile que mora em você!

Te despir com calma,
me despir também —
tudo em sincronia:
tatear, lamber, mapear seu corpo
como quem lê um texto sagrado
com a língua.

Dedilhar seu mamilo esquerdo,
durinho, arrepiado,
enquanto minha boca saboreia seu néctar,
e minha mão direita —
indicador e médio, apóstolos do prazer —
invocam seu ponto Genial.

Te ver cavalgar,
te ver subir e reinar,
até você jorrar uma véu da noiva
em espasmos sagrados
sobre nosso Ganges —
nosso leito sagrado.

E então te pôr de ladinho,
vaivém crescente,
alternância de abismos e voltas,
até o tempo entrar no be-bop:
frase curta, batida frenética,
socando tudo com ritmo e ternura.

Te ver encharcar o lençol outra vez.

E ainda te virar:
te pôr de quatro,
te analisar com a língua —
cientista e amante.
Dilatando devagarinho,
um dedo, depois dois,
talvez três…
até, com amor, sodomizar-te.

E no final, juntos:
gozamos.
E nos deitamos abraçados,
olhando o teto como quem contempla o céu de uma infância.
Tudo salvo no nosso disque dur,
esse que só se abre por reconhecimento facial,
onde mora o segredo do que é proibido —
e eterno.

terça-feira, 10 de junho de 2025

10/06/2025 (um ano e uma semana depois)

10/06/2025
(um ano e uma semana depois)

Pelos cinzas, dançam Wayne e o vento,
23° no dorso do tempo sem solo,
Tiramisú derrete o pensamento,
Fritz mia um solo no meu colo.

Strawberry Akel, em flor dissolvida,
Infant Eyes —
azul,
sem forma, sem culpa, com vida.

domingo, 8 de junho de 2025

Valhalla (Blauwe lente)

Valhalla

(Blauwe lente)


Stroopwafels ardem na língua do tempo,
grudam no céu da boca da eternidade —
cogu dança nos olhos de Van Gogh,
as orelhas dele sussurram Monique,
deitada nua sobre o lençol azul
que cobre o leito dos trilhos de Amstedã

A bicicletinha, sem freios nem freios,
corre sozinha pelas veias do mapa,
todos os canais levam aos seios fartos
que zombam da gravidade como anjos caídos
com mamilos que apontam pro além

Ghost Train Haze sopra seu feitiço,
traz risos que brilham em câmera lenta,
ergue torres de nuvem na mente febril
e faz da alma uma locomotiva
correndo sem trilhos, sem tempo, sem ré

Erva da boa gira nas hélices do pensamento,
confunde os ponteiros, dobra as horas,
cria pássaros feitos de fumaça e desejo
que cantam em holandês dentro do peito

Monique morde um stroopwafel com os olhos
enquanto Van Gogh pinta sua vulva em aquarela,
sem moldura, sem juízo,
só a verdade nua da carne surreal
onde o delírio acende seu cachimbo
e ri

Cai uma chuva boa prazenteira,
ácida, líquida, pulsante,
como se o céu também tivesse comido cogumelo —
pingos dançam, se multiplicam,
viram olhos que piscam nas calçadas,
línguas que lambem as vitrines do delírio

De dentro da bicicleta nasce um girassol.
E Monique, holanDeusa suprema,
sorri —
milagre loiro na esquina da loucura

quarta-feira, 4 de junho de 2025

Papai é ateu, mas…

Papai é ateu, mas…

Florzinha,  
Vem cá, vou te contar com amor,  
Sobre deus, fé e o que for.  
Tem quem jure que ele está no céu,  
Com barbas brancas, num trono de véu.  

Outros, como eu, não crêem assim,  
E acham que deus pode ter outro fim.  
Mas, chérie, o que importa, de verdade,  
É viver com bondade, com curiosidade.  

Dizem que deus fez o mundo girar,  
Com estrelas, montanhas, o mar a brilhar.  
Mas talvez, Flor, só talvez, preste atenção,  
deus seja um conto do nosso coração.  

Como quando você inventa um herói,  
Com capa, coragem, que voa e se formou.  
As pessoas sonharam: “Como ele seria?”  
E deram a deus o que a alma queria.  

Deram amor, justiça, um olhar protetor,  
Histórias pra guiar, pra afastar a dor.  
Mas, às vezes, Flor, com tanto fervor,  
Esquecem de ouvir quem pensa com amor.  

Tem quem grite que só deus é a lei,  
E julgue o outro com fogo que sei.  
Mas, minha pequena, com asas no olhar,  
O mundo é mais livre pra quem sabe amar.  

Não é um deus que faz o bem brotar,  
É o coração que escolhe se doar.  
E se papai não crê num céu a rezar,  
É na terra que ensino você a voar.  

Seja gentil, curiosa, nunca se curve,  
Pergunte, descubra, o mundo é que serve.  
Pois mesmo sem deus, com ou sem razão,  
Papai é seu guia, com luz no coração.  

Decepção na Colméia

Decepção na Colméia

A deputada espanhola,
de cruz e pistola,
corre atrás do repórter negro
como quem caça esmola.

Invade sistema, finge ser outra,
pede PIX com fé devota,
posta selfie com arma e hóstia,
fala em deus com voz de idiota.

Falsidade? Sim. Ideológica.
Invasão? Também. Informática.
A pena? Dez anos, bem contados.
Mas seus passos já são italianados.

Si parte per l’Italia!
como quem vai à missa.
A extrema direita tem fé,
mas na justiça…

desliza.

Contemplar

Contemplar

Contemplar a cor da ausência,
o azul que arde sem pudor no contrabaixo das constelações,
onde cada nota vibra no útero do tempo,
e o tiramisú se derrete na língua da memória.

Molhadinha, faróis acesos —
a noite se oferece em carne de vela,
com os olhos vidrados no golaço do Cabuloso,
onde a arquibancada uiva em esperanto lunar.

Jack Herer canta no pulmão do infinito,
as cinzas dançam com os seios da fumaça,
e o cheiro de Deusa no cio
abre fendas no real,
fazendo do delírio
uma flor.

Contemplar, então,
é descalçar a lógica,
e caminhar nu
sobre o dorso azul
da imaginação.

terça-feira, 3 de junho de 2025

Un an

Un An

Aujourd’hui, un an. Et tout se tait,
sans ta présence, ton amour parfait.
Le temps s’étire, mais peine à guérir
la plaie de t’avoir vu partir,
toi, mon premier, ma racine vive,
mon fils perdu au bout d’une dérive.

Entre le deuil et un souffle apaisé,
douze années d’un combat épuisé.
Maintenant tu dors, délivré du mal,
près de ta mère, dans l’amour total.

Ton rire demeure, lumière en secret,
dans la nuit des jours, quand le soleil se tait.

Um ano

Um Ano

Hoje faz um ano. E tudo é silêncio,
sem sua presença, seu afeto imenso.
O tempo caminha, mas mal cicatriz
a dor de perder meu primeiro, meu raiz.

Fico entre o luto e o alívio —
doze anos de luta, um longo declive.
Agora descansa, livre da dor,
com sua mãe atriz, no mesmo amor.

Seu riso persiste, secreto farol,
no escuro dos dias, no frio do sol.

domingo, 1 de junho de 2025

Ūnicae

Ūnicae

Foi o amor mais puro, mais sincero, mais intenso — desses que parecem ter sido escritos por um poeta febril, e não vividos por dois seres imperfeitos. Anos de devoção quase mística, um tesão desmedido, beirando a obsessão, como se amar fosse perder-se com gosto no outro. E eu me perdi. Pisei feio na bola. A separação veio como sentença. Não houve apelação, apenas o silêncio e a distância.

Anos depois, compreendi — com a sobriedade que só o tempo e a abstinência trazem — que foi uma das melhores coisas que me aconteceram. Parei de beber. Parei de me enganar. Fui um desastre com ela, sim. Mas também fui jardim em dia de primavera, porto seguro em noite de tempestade. Tenho plena consciência disso.

Até tentamos retomar uma amizade nos últimos tempos, mas sua chatice, que é uma característica recente, presente coincidentemente desde que ela começou a fazer análise, acabou por me despertar, por um lapso de tempo, minha maladresse que a incomodava tanto, e isso deu um banho de água fria no processo de retomada da amizade. Amizade que não acredito mais ser possível, afinal, além de ela me ter “riscado da sua vida”, segundo ela mesma, a pessoa deliciosa que foi uma grande amiga durante dez anos antes de nós apaixonarmos, parece não mais existir.

Ela, por sua vez, tornou-se aquilo que mais temia: intolerante, dura, azeda como vinagre velho. Seu jeitinho agressivo, aquele jeito bruto que só mostrava a quem mais confiava, virou espada afiada. Riscou meu nome do seu livro da vida com a fúria de quem queima cartas antigas. Ela guardou os desastres como troféus, enquanto eu carrego as alegrias como cicatrizes que brilham. Não creio que um dia ela se permita ver que também feriu, que também quebrou coisas que eu não consegui colar. Talvez nunca reconheça que fui, além de desastrado, também motivo de risos, de orgasmos, de ternura.

Mas, como não sou dono da razão, e aprendi que o mundo é um redemoinho imprevisível — quem sabe?…

Hoje sigo em paz, feliz com o que o destino me reservou. E, ao contrário da eterna musa, não a risquei, nem a riscarei da minha história. Ela mora num canto do coração onde as luzes são suaves, e a trilha sonora é a do sexo que faz esquecer quem se é. Porque seu segredo, a arma mais poderosa, é esse: o sexo divino. Aquilo que hipnotiza mesmo os homens mais lúcidos.

E se um dia — por obra do acaso ou das perversões do destino — eu puder reviver essa magia… não negaria. Mas que não passe disso. Sem promessas, sem armadilhas.

Porque sei, com uma certeza serena, que ela foi — e sempre será — a mulher da minha vida. E, ao mesmo tempo, aprendi que a vida é larga, generosa e cheia de surpresas. E que é totalmente possível ter outra mulher da minha vida. Ou mais de uma. Ou nenhuma. Porque amar, às vezes, é deixar ir. Outras vezes, é ficar quieto. E seguir.

Fritz en sécurité

Fritz en sécurité

Les grilles pour sécuriser les fenêtres sont arrivées.
Je vais trouver quelqu’un (peut-être un voisin) pour m’aider à les installer.
C’est très simple, mais avec mon handicap,
il n’y a que le sexe qui reste simple — seul ou accompagné.

quinta-feira, 29 de maio de 2025

Definição

Definição 

Conservador, no dicionário da dor,
é o que teme o amor com outro sabor.
Chama-se “reto”, mas vive torto,
fecha-se ao novo, prega o aborto—
mas só da ideia, do afeto alheio,
do beijo queer no meio do recreio.

É misógino de missa e de machete,
xenófobo em inglês com sotaque de sete.
Faz do racismo seu pão com manteiga,
ri da tragédia, mas chora se o boi se esfrega.

Transfóbico? “Só defendo a família!”
Ignorância empilhada em empilhadeira de milha.
Canta o hino como se fosse oração,
mas reza por armas com devoção.

Tão seguro de sua moral de caverna,
que ao ver um arco-íris, tranca a perna.
Não lê, não ouve, não quer entender—
só quer um país onde possa bater.

Intolerante por dentro e por fora,
confunde “valores” com a lógica da espora.
Tem nojo de tudo que não controla,
mas treme ao ver um beijo em sua escola.

Sinônimo? Maldoso. Antônimo? Razão.
Conservador é quem tem medo do coração.
Acha-se guardião de um tempo passado
que nunca existiu… só foi inventado.

quarta-feira, 28 de maio de 2025

Pecoris Dominus

Pecoris Dominus

Era um capitão sem honra nem glória,
de chute no traseiro fez-se história.
Do exército, expulso por trambique,
virou deputado, mais morto que chique.

Trinta anos no baixo clero mofando,
sem projeto, sem fala, só berrando.
Comprou imóveis com grana no dente,
mas pro povo? Um sorriso indecente.

Presidente! Que prêmio irônico!
Fez do país um circo agônico:
armou a plebe, blindou milionário,
matou de riso — ou de vírus — o otário.

A cloroquina virou hóstia santa,
e a morte, estatística que não espanta.
Negou a ciência, o luto, o cuidado,
chamou de marica quem tinha chorado.

Rachadinha? É só um detalhe,
como um palavrão em oração de Natal.
Misógino, racista, homofóbico,
mas sempre com um tom patriótico.

“Deus, pátria e família!”, berra o gado,
sem saber que é slogan do passado
de botas, porretes e tortura,
mas vai lá, né? Fé não tem fissura.

Agora réu, que trama bonita:
golpe de Estado em noite bendita!
Se preso for, virá mártir sagrado,
com crucifixo e fuzil do lado.

E quem o segue? Triste fauna.
Ou burro, ou mau, ou alma insana.
Mas como o Mito é combo completo,
o gado olha e diz: “É o espelho certo!”

Assim, entre gritos e fake news,
vai-se o país, de joelhos e sem luz.
E o futuro? Vai rimar com “lixo”,
se não jogarmos esse verme no esquicho.

Injustiça

Injustiça 

— Papai, me diz com clareza,
por que quem limpa a sujeira
tem sempre a cor da tristeza
ou da madeira?

Fiquei mudo uns segundos,
tentando o nó desatar:
há cores herdadas do mundo
que ninguém quis trocar.

Expliquei com tom sincero,
sem pesar nem fingimento:
— Filha, o sistema é severo,
pinta a cor com sofrimento.

Quem nasce perto do trono
não esfrega chão nem pia,
mas quem tem tom de outono
nasce varrendo o dia.

Não é que seja destino,
ou falta de vocação:
é que o mundo é um moinho
que mói gente na estação.

Distribui mal os lugares,
marca cedo quem vai servir,
e fecha os mesmos altares
pra quem só quer existir.

— Mas isso é justo, papai?
— Nem um pouco, meu amor.
Só que o costume distrai,
e a injustiça tem cor.

Mas sua pergunta, menina,
já faz brotar rebeldia:
quem pensa, muda a rotina,
mesmo com rima vazia.

Quem sabe um dia, Florzinha,
quando for grande, então,
ninguém mais lave sozinha
a sujeira da exclusão?

terça-feira, 27 de maio de 2025

Vermes de gravata

Vermes de Gravata
(um poema para quem ainda crê na palavra)

No pódio da infâmia sobem sorrindo,
Hitler à frente, já prevenindo
o que viria com tanto esmero:
Mussolini, Milei, Bolsonaro — o zero.

Netanyahu reza bomba em escola,
Trump bate palma, a verdade se enrola.
Meloni costura com linha fascista,
Orbán fecha a porta e rasga a pista.

Bukele vigia com olhar de Big Brother,
Zemmour recita o ódio do outro.
Farage, Le Pen — versão detergente:
“limpeza étnica”, mas dita “gente”.

E surge Musk, num foguete dourado,
vendendo o céu, pisando o legado.
Faz da liberdade uma ação na bolsa
e empacota o mundo numa “graciosa” bolsa.

São muitos nomes, a mesma ração:
ignoram cultura, ciência, razão.
Desprezam respeito, pisam na escola,
vendem justiça, embrulham e embolam.

Humanismo? Pra eles é praga.
Verdade? Só a que o algoritmo propaga.
Igualdade? Só se for de mercado.
E quem pensa diferente é cancelado.

Mas eis que o povo, o tal “cidadão”,
que sonha com ordem, mas ama a prisão,
aplaude, vota, marcha, delira —
com quem o despreza e depois o retira.

Será burrice? Falta de estudo?
Ou pacto assinado com algum deus mudo?
Talvez um combo: ignorância e maldade,
com molho de medo e falsidade.

E nós? Poetas, loucos, ateus e artistas,
seguimos a gritar em pistas mistas.
Porque a palavra, mesmo cansada, resiste —
na contramão dos vermes que ainda existem.

Vermes de gravata (curto)

Vermes de Gravata

Hitler sorri no retrato gasto,
Mussolini acena do mesmo pasto.
Trump, Milei, Bolsonaro, Meloni,
vestem de novo o velho demônio.

Netanyahu reza com míssil na mão,
Orbán censura, Bukele vigia,
Le Pen promete “proteção”,
mas só pra quem pensa igual à família.

Zemmour, Farage, o tom é o mesmo:
ódio embrulhado num nacionalismo a esmo.
E Musk? Vendendo o céu a prazo,
enquanto a terra apodrece em seu atraso.

Educação, cultura, ciência, respeito…
são palavrões no dicionário estreito.
E o povo, perdido, bate continência
a quem transforma medo em conveniência.

Burrice? Maldade? Ignorância em bloco?
Ou um coquetel que nos leva ao sufoco?

Poetas gritam, artistas resistem.
Enquanto esses vermes ainda persistem.

O bicho homem

O bicho homem 

Tudo começou com pedra e pontaria,
na pré-história da anatomia.
Era caça, era fome, era instinto,
ninguém falava em “pecado” ou “extinto”.

Aí veio o arco, a flecha, a mira,
mais proteína, menos mentira.
Matava-se bicho, e não opinião,
ninguém explodia por religião.

Mas bastou o bronze, bastou o ferro,
e o homem fez do irmão seu desterro.
Inventou a guerra, a espada, o escudo,
e esqueceu o gosto do fruto maduro.

A pólvora, então, soprou da China,
fez do monge um franco-atirador na esquina.
Mosquetes, canhões e cruzadas loucas —
por um “amém”, cabeças ocas.

No XIX, metralha e repetição,
a fábrica virou confissão.
No XX, com tanques e bombas nucleares,
fez da Terra um lote de bazares.

Hoje, com drone, com chip, com senha,
a bala pensa e a bomba desenha.
Islamista mata desenhista, sem remorso,
por Alá — ou pelo ócio. Que esforço!

Judeu mata islamista, com razão herdada,
com Tanakh, com drone, com bala guiada.
E o ciclo gira, gira e se repete,
com fé, com farsa, com internet.

Tudo por terra, mulher, bandeira,
por um pedaço de chão ou de besteira.
E os crentes, de Bíblia ou Alcorão,
bradam pelo porte como se fosse salvação.

Ô bicho burro! Com tudo que sabe,
ainda se esconde atrás de uma labe.
Tem chip na mão, inteligência na nuvem,
mas não aprendeu que matar não é virtude.

Acha que é raça, é povo eleito,
mas fede a sangue, rancor e despeito.
E assim, armado, crente e confuso,
vai escrevendo o fim… com cartucho incluso.

sexta-feira, 23 de maio de 2025

Os sete haïkus

Os sete haïkus 

Haïcuzinho

Peitos que brilham,
Pezinhos mágicos dançam,
Bocarra sussurra.

Goza!

Bunda gostosa
cavalga sem piedade
ela esguicha, grita!

27%

Verdinho acende,
sativa dança no ar,
verso se revela.


Contrafilé

Sangue na língua
O bife exala calor
Renova a vida!

Dolce Italia!

Tiramisù treme
na colher que beija a boca
delírio se dá.

32%

Verdinho suave,
índica embala o sossego,
no tempo, repouso.

Desde 1921

Peito sagrado,
cinco estrelas brilham sol —
azul imortal.

quinta-feira, 22 de maio de 2025

(L)ouvado (S)eja (D)eus

(L)ouvado (S)eja (D)eus

O trem invade o útero da manhã,
lisérgico o doce, pulsa no escuro,
a lua lambe o sexo balzaquiana,
coxas abertas num convite obscuro.
Torto viril, meu grito mais impuro
esguicha entre dentes e porcelana.
Na língua, um beijo de fogo e lama,
no ventre, um espelho que não perdoa.
Cada gozo é relâmpago que ressoa,
rasga o real, e a razão se derrama.

Tankaqui

Tankaqui

Xoxota cabeluda
goteja azul, latejando,
minha alma enlouda.
Pezinhos de unhas vermelhas
masturbam minhas orelhas.

Surreaneto lambuzado

Surreaneto lambuzado 

Sorvete de banana entre as coxas dela,
derrete em silêncio, impudico e febril,
Luma de Oliveira, deusa paralela,
sorri como um vício dourado e infantil.

No kart do tesão ela voa em fumaça,
seios em flor, primavera selvagem,
a maconha estala, o tempo se enlaça,
língua e vulcão numa mesma linguagem.

Os pneus gritam versos no asfalto molhado,
o mundo evapora em aroma de gozo,
Luma cavalga o instante alucinado

com olhar de pecado e beijo venoso.
O piloto, feito louco, com a boca entreaberta,
degusto esse sonho que nunca desperta.

Terra rotunda est

Terra rotunda est

Mexerica eu conheci
na fila do supletivo.
Eu já meio fora de si,
ele com ar pensativo.

Nem fiz prova, nem fiquei.
Era cedo, eu já chapado.
E o que a escola não me dei,
a rua deu — bem parcelado.

Tocávamos violão,
mas com rumos diferentes:
ele fez do som missão,
eu tentava, entre acidentes.

Fui de baixo, fui de piano,
trompete, quem diria!
Nunca fui bom — não me engano —
mas a alma se perdia.

Ele, firme no dedilhar,
chôro puro, Garoto inteiro.
Eu deixava o jazz falar
numa escala sem roteiro.

Quase trinta, criei coragem,
fiz as provas de uma vez.
Peguei um voo, nova viagem:
Paris me abriu sua altivez.

Graduação, mestrado e vinho.
Lá fui aluno aplicado.
Mexerica, outro caminho:
doutorado — também em galo.

Ele veio, fez, voltou.
Nem nos vimos, veja só.
Cada um se graduou
do seu jeito, com seu nó.

Hoje a vida separou
as guitarras e os refrões.
Mas de longe ainda ecoou
nossa amizade em dois tons.

A Terra é redonda, irmão,
mas cheia de curva escondida.
E às vezes, sem previsão,
ela acerta… a nossa vida.

terça-feira, 20 de maio de 2025

Josué, o Patriota

Josué, o Patriota 

Imbrochável e fiel,
devoto de São Goodyear do anel,
seguiu os conselhos do mito genial
com cloroquina na mochila — essencial.

Montou no jetski da redenção,
rumo ao fim-do-mundo, com convicção,
pra encontrar Olavo e ouvir a verdade:
a fórmula pra salvar a liberdade.

Deu duas voltas inteiras na Terra,
cruzou oceano, deserto e serra,
e quando viu que não havia o fim,
suspeitou de um complô sem ter fim.

Parou o motor num gesto solene,
abriu a mochila com ar solitário e sereno,
tirou com fervor o objeto divino:
um pneu de scooter, modelo pequeno.

Ergueu a miniatura aos céus em ação,
pôs a mão no peito, cantou o hino com paixão,
e ao fim da última estrofe, rugiu com fervor:
“Malditos comunistas! Eis o terror!

Arredondaram a Terra, maldita trapaça!
Cadê o abismo, a borda, a desgraça?!”

E enquanto girava sem rumo e no cio,
jurava ter visto o mapa do Brasil no desvio,
e em cada onda gritava, sem qualquer razão:
“Cadê a borda?! Isso é fraude da eleição!” 


segunda-feira, 19 de maio de 2025

Sanctus Papa Futurus

Sanctus Papa Futurus


Estudo idiomas o tempo inteiro,

sou ateu, quase um missioneiro,

quem sabe um dia, por dom ou sorte,

não rola um conclave mais sem norte?


Se os tempos mudam com seu cheiro,

e o papa puder ser maconheiro,

chegarei pronto, bem consciente,

latim na boca e alma quente.