Arthur e o Rap
Desde o berço, concertos de Brandemburgo embalavam-lhe os sonhos. Antes mesmo dos passos, vinham as palavras — claras, precoces — e, nos silêncios cúmplices entre pai e filho, desabrochavam Ligeti e Debussy. Na casa dos avós, e com a amada mãe atriz, vinham os ecos de bossa e do samba de raiz. O destino, esse velho ladrão de afetos, levou o pai por um tempo, mas não conseguiu levar o bom gosto. Arthur ouvia o que a babá chamava de música — “ela escuta música de rádio!” — e comparava com a lucidez de um pequeno crítico.
O reencontro foi como num filme que se recusa a ser triste. Com apenas três anos, ele cantou Chovendo na Roseira a capela. Vozinha angelical, afinação de espantar os anjos, expressão de velho sábio. Vieram os clubes de jazz com o pai, os papos com músicos adultos, como se fosse um deles. Começou as aulas de musicalização na Fundação e, quando a vida, cansada de separações, resolveu uni-los de vez — dessa vez na Cidade Luz —, ele mergulhou no Conservatório. Flauta doce barroca, depois violoncelo aos treze. Amava AC/DC, colecionava Mahavishnu. Era erudito e elétrico, clássico e caos.
Mas, aos quatorze, algo rompeu. Uma dor sem melodia. Quando entendeu o que acontecera com a mãe, o verbo explodiu. Os opiáceos e os “benzos” se tornaram abrigo químico — escudo contra o próprio ser. Largou os arcos, as partituras e a alegria. Abraçou o rap. Trocou a harmonia pela raiva, as notas longas pelo verbo cru. O mundo não merecia mais beleza. Não havia mais tempo para lapidar som — só urgência de cuspir palavra.
Não era música. Era sobrevivência.
Aqui jazz, Arthur - 03/06/2024