Ars musicae
Antes da bíblia, do grito, do verbo
já se soprava em ossos de pássaros.
Não era prece, nem pedido,
era flauta.
Aurignacianos, sem saber,
tocavam sinfonias para o escuro.
Vieram os tambores,
batucando peles e medos,
coagulando o tempo em compasso.
Veio a dança pintada em caverna,
o batuque que moveu a pedra
e a alma (se isso existia).
Muito antes do fiat lux,
já se cantava.
E talvez deus não tenha dito nada —
só assoviou um tema em modo menor.
Os neandertais, segundo consta,
tinham ritmo.
É possível que se apaixonassem
por meio de uivos sincopados.
Darwin, meio surdo, mas esperto,
achou que música servia
pra seduzir,
e não é que serve?
Bebês batem palmas sem saber por quê.
Pássaros flertam em falsete.
Gorilas dançam quando chove.
O que mais você quer como prova?
Escrevemos partituras em argila.
Inventamos escalas, ragas,
estrofes, árias e autotunes.
Platão desconfiava do tom menor.
Schopenhauer preferia Wagner.
No fundo, ambos queriam silêncio —
mas com trilha.
A música, dizem, é universal.
E é verdade:
ninguém escapa dela,
nem mesmo no elevador.
Os povos dançam, rezam, casam,
marcham, transam, enterram,
sempre ao som de algo.
Se não tem música,
o ritual é fraco, o gozo é morno,
o luto não pega.
E enquanto isso,
o maestro amigo me sopra entre goles:
“Gosto não se discute,
aprimora-se”.
E aprimoramos.
Mas uma coisa é certa:
deus não existe.
Existem as Deusas,
e a sublime, sagrada,
arte das musas.