sexta-feira, 27 de junho de 2025

Vizinha sui generis

Vizinha sui generis 

Ela mora há uns três anos numa calçada no boulevard Diderot, entre o hospital Saint-Antoine e a Gare de Lyon. Digo “mora” com a leveza de quem reconhece um lar onde oficialmente não há nenhum. SDF, como dizem aqui — sans domicile fixe —, o que soa muito mais elegante do que “moradora de rua”, quase um cargo público de Paris: Sentinela do Vazio.

A barraca de camping, já desbotada pelo tempo e pela poluição, é sua fortaleza. Diante dela, uma mesinha improvisada, uma exposição de bugigangas que desafia qualquer curadoria: velas gastas, esmaltes velhos, bonequinhas sem perna, maquiagem vencida, um espelhinho trincado e… livros. Uma livraria de calçada com acervo melhor do que muita biblioteca de subprefeitura.

Sempre que passo por ela — e passo quase todo dia, como quem confirma que a realidade ainda existe —, está sentada na porta de sua tenda, com um livro numa mão, um latão de 8.6 na outra, e uma tora acesa nos lábios. Sim, a tora. Não de madeira, claro. Um baseado. Daqueles caprichados, enrolado com técnica e calma, do tipo que daria orgulho a um jamaicano e inveja a um poeta. Solta uma fumaça espessa e doce, que perfuma o ar com alguma coisa entre incenso e insubmissão.

Apesar de visivelmente suja — e que mulher não estaria, morando numa calçada em Paris? — ela está sempre arrumada. Do seu jeito. Unhas feitas, cabelo preso com propósito, maquiagem aplicada com fé e pouca coordenação motora. Tem dias em que parece a versão punk de uma santa barroca: um tanto suja, mas absolutamente devota.

Hoje parei, não por ela — já sou viciado nessa imagem —, mas pelos livros na mesinha. Vi O Ser e o Nada, do Sartre, como quem deixa um aviso de presença. O Mundo como Vontade e Representação, do Schopenhauer, como quem grita que a dor é inevitável, mas pode ser explicada. E o que lia naquele momento, com o olhar mergulhado em cada frase como quem pesca minhocas em abismos? Breviário de Decomposição, do Cioran. Esse livro que você não lê: sobrevive.

Ela lia, tragava a tora e tomava pequenos goles da 8.6, como se alternasse filosofia, THC e álcool em doses precisas. Quase uma dieta metafísica.

Não trocamos palavras. Já pensei em puxar assunto, mas temo que ela saiba mais que eu. Temo que responda com uma lucidez tão cruel que eu volte pra casa me sentindo o verdadeiro SDF: sem domicílio emocional, sem endereço intelectual, sem ideia do que fazer com o que sei.

Porque, no fundo, ela é isso: um enigma sujo, perfumado e lúcido. Uma mulher que lê Cioran com maquiagem borrada e cheiro de erva no ar, enquanto o resto do mundo corre apressado para perder o sentido da vida em escritórios, reuniões e boletos.

E eu, que pago um aluguel indecente por 24 metros quadrados de solidão com aquecimento, passo por ela e penso: ela é mais fixa que eu. A barraca dela não muda de lugar. O olhar também não. Está sempre lá, parado em alguma página do desespero lúcido.

Madame de Nada, chamo mentalmente. Porque do nada fez morada. Porque da rua fez biblioteca. Porque do caos fez rotina.

E porque, convenhamos, não há nada mais profundamente humano do que fumar um baseado e ler Cioran às dez da manhã numa calçada de Paris.