Porque não?
Lá onde nasci e cresci — que é como dizemos quando queremos dar um tom épico a uma infância de chinelo Havaiana e picolé Kibom —, me deliciei com paisagens de cartão-postal, embora os postais já estivessem em extinção e ninguém mais soubesse o que fazer com eles além de apoiar copo suado. Eram paisagens de cachoeiras pulando das pedras como crianças sapecas, quebradas mil (e um ou outro tornozelo também), Cipó em flor, Lavras Novas com cheiro de fogão a lenha e saudade, Moeda brilhando sob o sol como se fosse feita dela, Milho Verde de nome poético e chão poeirento.
E sem esquecer da cidade natal, Del Rey curral, onde o pôr do sol parecia fazer questão de se exibir, se espichando até a Pampulha, como se ela fosse mar, e não lagoa… E porque não o bar do Cabral, esse templo democrático onde cerveja e filosofia dividem a mesma mesa e ninguém se importa com a ortografia?
A alguns quilômetros dali — “logo ali”, como gostamos de mentir com carinho —, havia praias que aprendiam com o mar a arte de seduzir. Martins de Sá e sua areia que gruda na alma, Cumuru que é quase segredo e, porque não, o Arpoador, onde o sol se deita com preguiça carioca?
Tudo isso pra dizer que, ainda que tenha me sentido rei naquele pequeno reino de belezas, me exilei voluntariamente. Vim parar aqui, onde o francês é o latim com enfeite e o pão tem nome e sobrenome. E não posso reclamar: a floresta de Fontainebleau, que me recebeu com o silêncio que só as árvores velhas sabem fazer. Giverny, com seus jardins tão bem cuidados que até as abelhas respeitam, parece ter sido arrumada por um impressionista com TOC.
O vale de Chevreuse e a floresta de Rambouillet que ensinam que verde também pode ser melancólico. E os castelinhos, tão singelos quanto é possível ser com torres e brasões…
E na cidade onde moro, Montmartre — que ainda guarda um pouco de sua alma boêmia entre os turistas —, vejo o pôr do sol à beira do rio como quem assiste a um filme que já viu, mas nunca cansa. Os campos de Marte se estendem como um tapete para o céu cair em cima. E porque não, o Baron Rouge, onde o vinho escorre leve e as ostras escorregam goela abaixo?
Já mais longe, como dizemos por aqui quando a preguiça é menor que a vontade de ir, tem o Vale do Loire, com seus castelos que fingem modéstia. Etretat e seus penhascos que desafiam o mar a não bater neles. Honfleur, onde o tempo parece ter esquecido de passar. E lá pelas bandas do sul, a Costa Azul, que é azul mesmo, e o Verdon, com suas profundas gargantas que sussurram histórias de pedra e água. E os Alpes, que só de olhar já dão falta de ar — beleza também é altitude.
Sou um cara ordinário, sim, desses que perdem chave, esquecem senha, tropeçam na própria alma. Mas sou de uma sorte indecente. Carrego na memória imagens de tirar o fôlego e, às vezes, a razão. Paisagens que parecem ter sido moldadas para consolar os dias que amanhecem de mau humor. Encontros que não renderam selfie, mas renderam vida. Inspirações inesperadas que surgem entre um splif e outro — e porque não, uma ideia torta no fim da tarde?
Porque, no fundo, tudo isso talvez não signifique nada. Ou talvez signifique tudo. Uma espécie de sentido secreto para essa existência que, embora pareça insignificante à luz fria da razão, brilha feito vaga-lume quando a memória acende.
E porque não?