domingo, 29 de junho de 2025

O espelho de Amira

O Espelho de Amira

Amira, 22 anos. Não cursou universidade, nem técnico, nem nada com “formação” no nome. Não por falta de neurônio – quem olha praqueles olhos nota que ali há coisa guardada –, mas talvez por excesso de ausência. Ausência de incentivo, de aplauso, de fé. Falta de empurrão familiar. Ou, como diria a tia Zohra, “é que estudar não dá dote.”

E assim, nosso enredo começa entre os corredores do Carrefour da rua des Citeaux, quase esquina com o Faubourg Saint-Antoine, onde os preços caem mas os sonhos ficam na prateleira de cima. Difícil de alcançar sem escada. E escada, meu caro, nem sempre se vende em supermercado.

Amira acorda cedo, menos às terças (dia sagrado de folga, quase um ramadã pessoal). Toma sua ducha, se veste como quem prepara oferenda: roupa preta, mangas compridas, a despeito do termômetro gritando “canicule!”. Come sua fatia de kesra com jben – pão e queijo, poesia em estado sólido – e bebe o chá de menta que parece mais ritual que desjejum.

E então: véu. Amira cobre a cabeça com cuidado. Como quem sabe que cada dobra carrega o peso das expectativas de séculos, e talvez até de sogras.

Vai até a Gare de Bondy. Anda com a firmeza de quem caminha sobre um destino previamente escrito – caligrafado, talvez – por algum ancião rabugento. No metrô, três estações antes do Carrefour, ela vira heroína de sua própria novela: saca da bolsa (Louis Vuitton made in Guangzhou) um espelhinho, um batom Sephora vermelho, e o delineador afiado como crítica social.

A maquiagem é feita com o esmero de um pintor flamengo: traços precisos, respiração contida. Quem vê, jura que ela vai para um encontro com o destino. Mas é só o turno das 9h às 17h no caixa 4.

Ali, ela brilha. Sorri. Elogia cortes de cabelo, pergunta pela família, pisca como quem entende mais do que diz. Suas mãos são um espetáculo à parte: unhas vermelhas como cerejas maduras, dançando sobre notas sujas de euro como se fossem partituras de um flamenco reprimido. Uma cena almodovariana, com certeza. Só faltava o Antonio Banderas no açougue e a Penélope Cruz em promoção no hortifrúti.

Quando o expediente termina, Amira volta para o metrô. Reencarna. Lenço umedecido na mão, remove a maquiagem com a mesma delicadeza com que antes se pintara. Deusa de ida, sombra de volta. Desfaz os contornos, limpa o vermelho dos lábios, apaga o personagem.

Talvez procure um marido. Um da lista de sonhos dos pais: homem de uns 50 anos, careca não por opção, com um harém, devoto do Alcorão e, eventualmente, de tapas não muito simbólicos.

Mas há ironia nesse roteiro. Maomé não contou com a influência tardia da TV brasileira. Crescidos entre chacretes e paquitas, homens ocidentais, “educados” pela trupe do Bob Marinho nos anos 80, e que, mais tarde se bronzearam nas praias da Costa Azul, e na costa catalã, olham para Amira com fascínio. Aquela que se cobre inteira, de véu e reserva, deixa mais à mostra do que muita minissaia na grama do Parc Floral. Para olhos domesticados pela nudez cotidiana, o mistério virou fetiche.

E assim, enquanto ela esconde, eles veem. Enquanto ela se protege, eles desejam. E a cada batom passado ou retirado, a cada sorriso no caixa, a cada elogio ensaiado, Amira escreve – sem saber – uma crônica entre véus e vitrines, entre tradição e rebeldia.

Não quer ser mártir, nem mártir de supermercado. Só talvez, se a poesia permitir, ser vista. Com ou sem delineador.