terça-feira, 24 de junho de 2025

Saco, quase cheio

Saco, quase cheio

Eram quase três da manhã, aqui em Paris, quando eu e meu tio-brother trocávamos mensagens no WhatsApp. A essa altura da madrugada, a insônia já não pede explicação, só companhia. Ele mora em BH, é alguns anos mais velho, torce pra um time monocromático — o que já revela muito sobre seu senso de estética e sofrimento — e, vez ou outra, resolve brincar de cronista.

“Você já leu minha crônica De saco cheio?”, perguntou ele. E antes mesmo que eu pudesse responder com um “já” sonolento ou um “manda de novo”, ele emendou: “Ainda não vi você escrever uma crônica…”

Aí foi golpe baixo. Não pelo conteúdo, mas pela estrutura: esse “ainda” escorregadio, que vem cheio de expectativa disfarçada de incentivo. Esse “você” tão direto que parece apontar o dedo. E essa “crônica”, que soa fácil na boca de quem já escreveu, mas pesa uma tonelada na mão de quem ainda está devendo.

Respondi, claro, que já tinha lido, sim, mas que releria com mais atenção no dia seguinte. E que talvez, dependendo do humor do universo e do silêncio das crianças invisíveis que moram na minha cabeça, eu até tentasse escrever uma também. Mesmo sabendo que meu tio, esse ser de letras — ao pé da letra — e testículos lendários, não é leitor de fácil agrado.

É que ali, naquela hora da noite em que até o Fritz boceja devagar, eu não estava pra leitura. Morfeu me chamou, sem educação, e eu fui. Deitei tarde, dormi pouco, como de costume. Três horas e uns minutos. E, coisa rara: não sonhei com Deusas, nem com “otras cositas más”. Sonhei com trechos de O lutador: “Lutar com palavras é a luta mais vã. Entanto lutamos mal rompe a manhã.” Acordei com a sensação de que eu lutava demais. Ou talvez pouco demais.

Às seis e quarenta e cinco, abri os olhos com a pressa de quem não tem compromisso nenhum além de existir. E pensei: que urgência é essa de despertar? Que relógio interno é esse que me cobra textos, respostas e crônicas às terças?

Levantei. Fumei unzinho. Sentei. E enfim li De saco cheio.

Gostei. Me diverti. E, por um breve instante, tive vontade de fazer o mesmo: transformar um detalhe incômodo — no caso dele, um abscesso testicular; no meu, a cobrança fraternal — em literatura. Claro que ele fez melhor. Ele teve um hospital, um pátio, enfermeiras quase lascivas, um polonês pálido com cicatriz na alma e até uma referência a Auschwitz. Eu tenho… uma terça-feira de verão e o desafio de fazer graça com o que ainda nem dói.

Mas talvez seja isso que uma crônica faz: pega um saco — cheio, murcho, leve, extra ou simbólico — e transforma em história. Com sorte, em riso. Com jeito, em memória.

E aqui está a minha. Meio belorizontina, meio parisiense. Com afeto sincero.

Sem moral, mas com alguma ironia.

Porque, como dizia o poeta, “Lutar com palavras parece sem fruto. Não têm carne e sangue… Entretanto, luto.”