Liberté, Égalité, Fraternité… com exceções de costume
Nas fachadas dos prédios públicos, ainda se lê em letras gastas: Liberté, Égalité, Fraternité. Três palavras que foram grito, sonho e sentença. Estão por toda parte — entalhadas em pedra, grafitadas em muros, ecoadas em discursos. Estão até nos manuais de história e nas camisetas vendidas aos turistas, como se fossem marca registrada de um país que inventou a revolução e, de vez em quando, lembra disso.
Um belo país, sem dúvida. Terra de Rousseau, que a França chama de seu, mesmo tendo nascido em Genebra — como se as ideias tivessem passaporte, e que pensou a liberdade como quem a pressente nas matas da infância; de Montesquieu, que soube separar os poderes como quem conhece os perigos do acúmulo; de Voltaire, que fez da ironia uma arma de resistência. Terra de Condorcet, que acreditava na razão como remédio; de Sieyès, que soube escutar o Terceiro Estado antes que este explodisse; de Lafayette, que atravessou oceanos por ideais; de Cassin, que construiu pontes jurídicas para o pós-guerra; de Veil, que escreveu dignidade no corpo das mulheres; de Badinter, que defendeu o direito de não matar nem com a toga.
E também de Olympe de Gouges, que teve a ousadia de escrever que a mulher nasce livre e igual ao homem — e pagou caro por isso. De Victor Hugo, que deu voz aos miseráveis antes que o mundo pensasse neles. De Sartre, que nos obrigou a encarar o espelho. De Missak e Mélinée Manouchian, que lutaram com coragem de quem ama uma pátria que ainda os olhava com desconfiança.
Um país de gigantes, sem ironia. Sem aspas. Com respeito.
Mas a França também é feita de outras histórias, essas que não estampam os manuais. Zineb Redouane morreu ao fechar a janela, Steve Caniço caiu no rio e o silêncio das autoridades foi mais fundo que a água. Nahel levou um tiro em plena luz do dia, Traoré morreu sob custódia, Fraisse tombou numa manifestação — gente comum, cidadãos, lembranças incômodas de que a fraternidade, às vezes, tem prazo de validade.
Há também Koumé, El-Yamni, Jean‑Paul Benjamin, Babacar Gueye e tantos outros. Todos eles, nomes riscados das narrativas oficiais, mas gravados nas paredes, nas marchas, nas memórias que não se deixam enterrar.
E é nesse ponto que algo range.
Como disse um poeta baiano: “alguma coisa está fora da ordem.” E talvez esteja mesmo. Ou talvez a ordem, com letra maiúscula, funcione exatamente assim: como um filtro, um funil, um fichário. Onde a liberdade depende da sua certidão de nascimento, onde a igualdade se mede pelo CEP, onde a fraternidade não se estende além da fronteira da aparência.
Porque é também terra dos que batem no peito para se dizer “de souche” — como se a origem valesse mais do que o destino, como se houvesse pedigree para ser cidadão. Franceses que se dizem guardiões da identidade e, na prática, são apenas guardas de fronteira do ódio. Os Darmanins, com seu autoritarismo elegante; os Le Pens, herdeiros do rancor como herança de família; os Ciottis, Zemmours, Retailleaus, que falam como se tivessem inventado a França e agora a quisessem para si, cercada, policiada, vigiada.
Falam em valores, mas destilam medo. Clamam por civilização, mas espalham barbárie. Dizem proteger a República, mas a desfiguram, como quem zela tanto por um retrato que acaba apagando o rosto.
E mesmo assim, vive la France.
Vive porque ainda pulsa nos becos, nas marchas, nas escolas públicas onde se ensina a pensar. Vive nos jovens que rimam resistência, nas bibliotecas de bairro, nas mãos que se estendem. Vive na coragem dos que não têm sobrenome de rua, mas carregam nas veias o sangue da revolução.
Liberdade? Ainda se deseja. Igualdade? Ainda se exige. Fraternidade? Ainda se constrói, um gesto de cada vez.
E se há quem queira calar os nomes, apagar os rostos, negar os corpos, sempre haverá quem os escreva de novo. No asfalto. Nos muros. Na história.
Porque, apesar dos vendavais, dos retrocessos e dos execráveis de ocasião —
vive la France!