quarta-feira, 25 de junho de 2025

A nutricionista formosa

A nutricionista formosa 

Com seus 1,67 de altura, bem acomodados em 83 quilos de pura formosura, Cíntia decidiu, ainda na adolescência, que seria nutricionista.
Fez o anúncio entre um pastel pingando e uma Coca gelada de 600 ml, e foi recebida com olhares entre o espanto e o riso abafado:
— “Nutricionista? Mas você só come besteira, menina! Sua mochila vive suja de chocolate e cheia de papel de bala!”

Ela não se abalou.
Porque onde os outros viam contradição, Cíntia via vocação.
E vocação não se pesa.

Estudou, suou (não em academia), e passou no vestibular da Estácio.
Federal era complicado demais, cheio de prova difícil, e de gente magra com pressa.
Preferiu o caminho mais curto — menos fila, mais aceitação.

No primeiro dia de aula, causou rebuliço:
Colegas a observavam como quem vê batata frita em refeitório de hospital.
Mas Cíntia seguia, firme. Comia Bis em aula de bioquímica, balas de goma nas práticas de dietética, e abria caixas de bombom Garoto como quem consulta o capítulo de um livro.
Almoçava no Xodó e jantava religiosamente no carrinho de cachorro-quente embaixo do apartamento dos pais, na Augusto de Lima.
Rejeitava o prato feito da mãe com disciplina: arroz, feijão, carninha moída, angu, saladinha e Sazon.
Preferia cheddar.

Formou-se sem distinção, mas com gosto, e antes do baile, subiu na balança com a serenidade de quem já sabe:
97 quilos de delícia pura.
Quatorze a mais, e nenhum arrependimento.

Nos primeiros seis meses, nenhum emprego.
Ninguém queria contratar uma nutricionista que parecia cliente do próprio fracasso.
Foi então que seu pai, bombeiro quase aposentado, puxou um empréstimo no Bradesco e alugou uma salinha na rua do Ouro, pequena e honesta, com vista pra rua Monte Alegre, e cheiro de tinta nova.
Ali, Cíntia montou seu território:
Mesa, cadeira, balança, banner da pirâmide alimentar e um porta-copos da Disney.

Quarenta e cinco dias depois, apareceu Silvia, balzaquiana, portadora de Crohn e de um senso de urgência bem alimentado, morava na rua Dona Cecília.
Achou Cíntia pelo catálogo da Unimed, marcou uma consulta, afinal, seu consultório era “logo ali”.
Só viu a nutricionista ao vivo na hora da consulta — e quase voltou pra casa.

Cíntia usava jaleco, mas também uma barra de Heycher’s semiaberta.
Falava sobre alimentação funcional mastigando goma de tutti-frutti.
Recomendou, com voz doce e dedos melados de chocolate:
– Café da manhã: pão integral, suco espremido na hora, ovo cozido.
– Almoço: arroz, feijão, legumes, carne branca.
– Jantar: sopa leve ou peixe assado com batatas.
Entre uma instrução e outra, tomava um Mate Couro gelado, com o canudo mastigado na ponta.
Imprimiu a dieta personalizada com entusiasmo.

Silvia ouviu, mas não ouviu tudo.
A imagem falava mais alto.
Na hora de sair, algo brilhou em meio aos papéis na lixeira do consultório:
uma embalagem amassada de New Foods…

Seguiu a dieta direitinho.
Perdeu peso.
Ganhou uma dúvida.
E trocou de nutricionista.

Mas nunca esqueceu Cíntia.

Que continua lá, com seus 1,67, agora talvez uns 98 quilos de coragem e chocolate.
Não emagrece, mas conhece cada alimento como quem namora a tabela nutricional.
Sabe que coerência emagrece o pensamento.

E que, às vezes,
a melhor dieta começa por aceitar
que o corpo da nutricionista
também é humano,
e deliciosamente contraditório.