quarta-feira, 30 de julho de 2025

Prece ao Senhor

Prece ao Senhor
(para declamar quando achar que está meio perdide)

Bom Senso que sois o único senhor,
que estás na essência,
sofisticado (ou não…) seja o vosso meme.
Venha a nós o vosso lema,
seja feita a vossa vontade,
assim no lar como no bar.

O riso nosso de cada dia nos dai hoje,
ajudai-nos a evitar as nossas ofensas,
assim como nós evitamos
quem nos tem ofendido.

E, por favor,
selecionai-nos as tentações —
porque “todas é” exagero,
e as melhores dão sentido ao caminho.

Guiai-nos, enfim,
sempre ao bem.

Hey man!

Nucleus Essentiae

Nucleus Essentiae

No centro da fruta, um caroço severo,
no centro do mundo, um pânico sincero.
Chamam de núcleo — palavra elegante
pra esconder a bomba no peito do amante.

Núcleo familiar? Um lar ou estopim.
Ninguém sabe ao certo onde acaba ou começa o fim.
Na célula, dança de DNA e mitose,
que às vezes vira câncer — uma apoteose.

Núcleo urbano: buzina e concreto.
No fundo, um sertão cercado de afeto.
Núcleo duro, núcleo gestor,
núcleo do medo, do ódio, do amor.

E o núcleo atômico, tão disciplinado,
segura a catástrofe com sorriso fechado.
Mas aí vem Chernobyl, vem Fukushima,
o núcleo vaza — e tudo contamina.

Veio Hiroshima, Nagasaki também,
só pra lembrar que o homem faz bem
em brincar de deus (fou-deus!) com seu dedinho torto,
plantando no chão o brilho do morto.

No núcleo da ideia há sempre uma falha,
um ruído, um eco, uma navalha.
E o essencial, dizem, é invisível ao olho,
mas fede a silício, a urânio, a orgulho.

No fim, talvez a essência nem tenha miolo,
apenas casca, verniz e consolo.
E o núcleo da essência, se é que há,
é só esse susto que insiste em ficar.

segunda-feira, 28 de julho de 2025

Soneto do Ápice

Soneto do Ápice 

Subi, não pelos pés, mas pelo assombro,
deixando o mar, a curva e sua espira.
O mundo ia sumindo, tom por tom,
e o peito, prestissimo, já se batia.

Eu ia empolgado — e era sincero —,
mas nada preparava o que se avista.
Nos jardins da Cimbrone, o instante é zero,
e tudo em volta torna-se conquista.

No mirante, parado, sem defesa,
chorei como quem nasce ou se despede.
Não sei se foi milagre ou sutileza,

mas tudo ali me fez cair a rede.
Nos jardins suspensos da leveza,
renasci? Talvez. Ou fui à minha sede.

domingo, 27 de julho de 2025

Coisinha

Coisinha

Inconsciente é bicho que não dorme,
mas age escondido, sem ter patrão.
No escuro do eu, dita o tom e a forma,
ri da razão como um bom charlatão.

Complexo de Édipo — drama e novela —
te amo, mamãe, mas ouço o sinal.
O desejo caminha em passarela
entre o afeto e o limite ritual.

Repressão: meu hábito mais discreto.
Não nego o que sinto — só dou espaço.
A vontade se esconde, não por veto,
mas pra dançar depois, no seu compasso.

Sublimação: pinto o nu que acende.
Desejo se escreve em verso e desenho.
O fogo transforma, e a arte entende
que o que era impulso, agora é empenho.

Transferência: dou amor a quem ouve.
Mas vejo no outro o que mora em mim.
Não é ilusão — é ponte que move
o que antes fluía sem ter um fim.

Ordens simbólica, imaginária e real —
três jeitos de ser e se perceber.
Na primeira, eu falo; na segunda, ideal;
na terceira, o mundo vem me escrever.

Estádio do Espelho: vi quem nascia.
A imagem brilhava: um eu possível.
Não era mentira, era poesia —
um rosto em processo, sutil, visível.

Nome-do-Pai é a Lei dita com eco:
“Desejar, sim, mas com forma e medida”.
Não freia, não corta — desenha um beco
pra que o desejo encontre sua saída.

Objeto a: coisinha sem sentido,
mas que, sem ter nome, me nomeia inteiro.
É falta criativa, brilho contido,
ponto de fuga do meu verdadeiro.

Falo — não só o órgão (fica claro!) —
mas o eixo, o traço, a rede, o sinal.
É símbolo vivo, jamais mero amparo,
tecendo sentidos no campo verbal.

Por isso sempre digo, entre tropeços,
na língua em que eu danço, sonho e embalo:
“às vezes falo com’eu penso…” — avessos,
às vezes penso co’meu falo.” — e me exalo.

Por isso…

sexta-feira, 25 de julho de 2025

De bom alvitre

De bom alvitre

No escaninho escuro da memória,
repousam fainas de um tempo esquisito,
alvíssaras de um mundo mais bonito,
que a vida — risonha — risca da história.

Um pão, diziam, era o molecote,
que em sonho ousado, quixotesco ardor,
flertava a moça — sua bela-flor —
riscando o chão batido do seu lote.

Estar nas tintas era o seu ofício,
pintava o tédio com requinte e brilho,
sem dar um cavaco ao próprio juízo,
— estar nas pampas já era seu trilho.

E o mundo, pasmo, ouvia seu alvitre:
“Desprezem tudo, até mesmo o sublime.
Quem sonha alto não passa de um alpiste,
num céu que engole os quixotes do crime.”

quinta-feira, 24 de julho de 2025

Salmo 8 (tentação)

Salmo 8
(tentação)

deus bate ponto no relógio da ilusão.
tão sagrado quanto um truque de salão,
vende pecado à prestação,
com juros altos na salvação.

fé cega, vaca atolada,
num brejo de orações mal passadas,
onde alma é moeda de troca
e amor… é só fachada.

orar virou senha de acesso,
ritual por comando de voz.
mas já no berço da areia e da pedra
fitna dançava entre nós.

satanás trocava nomes nas fronteiras,
shaytan e yetzer hara jogavam dados,
na tenda, um velho vendia tawba
em papiro de pecados reciclados.

chegavam caravanas do arrependimento,
maghfira entre tâmaras e preces.
na esquina, um escriba vendia kapará,
em latim, hebraico, e muitas vezes.

jahannam ardia antes do fósforo,
chet se confundia com lei.
o templo lavava as mãos de tudo,
enquanto o povo… dizia amém.

aveirah tingia a túnica do rei,
o sacerdote colhia avon com luva.
um bode expiatório subia a colina,
sem saber o que era teshuvá.

o bem e o mal jogavam gamão,
na sombra do juízo final.
a punição sempre pronta,
o perdão… bem, opcional.

“quando um otário nasce, um esperto vem ao mundo” —
dizem. mas a conta nunca fechou.
porque desde os primeiros gritos de fogo,
tem muito mais otário,
e o esperto…
foi quem criou deus à sua imagem e semelhança.

Amém 

Previsão: poesia instável

Previsão: poesia instável

Cirrus no céu: linha fina, elegante,
como verso de moça que sonha distante.
Altostratus pesa, grisáceo e sisudo,
um burocrata do tempo, calado de tudo.

Altocumulus — bolhas num mar de algodão,
coçaram a pele do velho Platão.
Nimbostratus, com cara de quem quer chover,
é nuvem com crise, sem saber o que ser.

Stratocumulus, vai, empurra, remenda,
parece reunião de pauta que não se entenda.
Cumulus? Ingênuo. Tão branco, tão bobo.
É nuvem criança correndo no lombo.

E o Cumulonimbus? Ameaça que encanta:
tem raio, trovão e uma alma flamenca.
Mammatus, bolsinha pendente, tão bela,
nuvem com seios — diria a Donatella.

Lenticularis paira feito nave mãe:
ETs em visita, mas ninguém vem.
Noctilucent! Ah, tu brilha no pólo —
poema noturno, vestido de solo.

E então os Contrails, suando os motores,
riscando o azul com sabores de dores.
São nuvens ou rastros? Pergunta maldita.
“É complô!”, grita o tio. A tia acredita.

Diz o poeta: “é vapor, é metáfora…”
Mas rima com medo, censura e discórdia.
Nas nuvens há de tudo: ciência, delírio.
E às vezes um gozo de céu tão etéreo.

No fim, toda nuvem é só tentativa
de desenhar o que passa — e ainda duvida.
Porque entre um nome e outro que o clima enfileira,
há sempre uma nuvem que falta na esteira.

E como diria Leminski, em leve desdém:
“nuvem é nuvem, mas sempre vem.”

A Balbúrdia do Cabrobró

A Balbúrdia do Cabrobró

Num convescote à beira do rebuliço,
chegou a patota — um séquito esquisito —
trazendo bufunfa, discurso postiço,
e um trambolho escondido num apito.

Falavam bulhufas com ar de acadêmico,
sopravam lorotas num tom hermenêutico,
um chá de lírio num brinde apoteótico,
rindo de si com desdém anestésico.

O quiprocó surgiu por uma migalha:
— Quem levou a ambrósia? — Foi você!
Ou talvez foi a sombra duma canalha
dançando no muquifo um cabrobró-pé.

Veio a bordoada — e num faniquito,
a musa tombou, sem mais cerebelo.
Restou só seu ânima, trêmulo e aflito,
catando seu canto sob o chinelo.

O sujeito, supimpa, mas meio lorpa,
cuspiu seu desgosto: — “Isso é quimera!”
Chamou de canalha quem chamava de corpa,
com voz tão rígida que secou a primavera.

Larica bateu: sardinha com goiabada.
A conversa azedou, virou tropel.
— “Democracia?” — “Besteira engarrafada!”
E o verso fugiu por debaixo do véu.

Agora o silêncio, paz pós-turbilhão,
nasce em mim como febre ou como nó.
Mas vibra — nervoso — em tom de negação:
tudo acaba num riso de cabrobró.

quarta-feira, 23 de julho de 2025

Ratucultracon

Ratucultracon

Não era só flor nos cabelos,
nem amor livre em San Francisco.
Era riscar mapas e modelos
num mundo blindado de arisco.

Theodore Roszak avisou:
“vem vindo aí o contra o sim”.
Mas o sistema logo engoliu
o grito punk no manequim.

Timothy Leary, de ácido e luz,
disse: “desconecte, repense, reluz.”
Hoje é coach com slides no telão
vendendo o mesmo sermão.

Jack Herer e a santa cannabis,
hoje em potes com QR code.
Angela Davis? Camiseta hype.
Revolta virou dress code.

Ginsberg ainda uiva na estante
ao lado de Bukowski e Kerouac,
mas há quem leia e ache elegante
a dor vendida em paperback.

Gil e Caetano, com sincretismo,
plantaram arte em chão careta.
Mas quantos ouvem tropicalismo
sem perceber a borboleta?

Yoko, Angela, Leary, Ginsberg,
teciam mundos alternativos.
Hoje são gifs — memes, zíper,
camuflados em feeds passivos.

A contracultura não é um look,
nem festival, nem TikTok.
É negar a pose, o truque,
é chutar o chão do próprio rock.

É ferida, não tatuagem.
É silêncio que desafina.
É beijo fora da linguagem.
É estrada sem vitrina.

E pra engendrar contracultura
é preciso comer sua gordura,
espremer sentido da fissura
sem esperar moldura.

Kerouac, me ouve?

Kerouac, me ouve?

contracultura
não é sticker vintage
na traseira do SUV

é ginsberg uivando
com o cu apertado de medo
num país livre

é timothy leary
pedindo carona à própria mente
com ácido e sem GPS

é jack herer —
erva na mão,
fome no peito,
esperando justiça onde só chega spray

é gil no exílio,
caetano entalado na garganta da embaixada,
não no Spotify do brunch

é yoko
gritando num museu
enquanto o curador pede silêncio

é angela davis
presa — não postada —
sendo negra, mulher e faca

contracultura
não é filtro,
é falha

não é rebeldia de caderno
é viver errado
com convicção

é não virar camiseta
nem linha editorial

é cuspir
onde querem que você assine

e ainda assim
assinar —
mas com sangue,
não com like.

terça-feira, 22 de julho de 2025

Tres Genera Ignorantium

Tres Genera Ignorantium

Há os que nunca souberam ler
porque o tempo era outro, e duro.
Saber, ali, era luxo a temer,
fome não espera o futuro.

Gente boa, que o mundo não quis,
e ainda sorri com o pouco que tem.
Perdeu o bonde, perdeu o giz —
mas nunca perdeu o bem.

Depois tem os que escolheram não crer
em livro, ciência ou razão.
Preferem o mito, o simples dizer,
um eco no lugar da visão.

É quase um alívio, confesso,
essa recusa, esse véu de sossego.
Pois o saber, nas mãos de excesso,
é faca que corta sem medo.

E por fim, há os que não vão além
porque o corpo limita o pensar.
Não é maldade, não é desdém,
é um teto que não vai quebrar.

Mas o mundo gira e se engana,
e os três, tão distintos na essência,
acabam na mesma varanda,
tomando lição de aparência.

É que há quem saiba demais — e torça
cada vírgula a seu favor.
Não erra, mente com força,
e ainda se pinta de amor.

Esse é o tipo mais perigoso:
sabe tudo, e usa o saber.
E os três tipos — o triste, o ocioso,
e o que não pode — correm pra ver.

quinta-feira, 17 de julho de 2025

Carnudinha rosada

Carnudinha rosada 

Te retirei, amor, da geladeira,
a carne em repouso, quase inteira,
seus sucos dormiam em nostalgia,
mas eu sabia — era o dia.

Fica ali, nua e rosada,
filé mignon de carne encantada,
1 quilo e um pouco mais de tentação,
deitada sobre a minha paixão.

Misturei, sem pressa, o feitiço:
2 colheres de azeite maciço,
2 dentes de alho bem amassados,
e mostarda Dijon — beijos passados.

Tomilho fresco, 1 colher sutil,
alecrim picado, do jardim febril,
saltei o sal com dedo profano,
e pimenta moída com gesto insano.

Te esfreguei — sim, sem pudor —
com as mãos cheias de sabor,
na carne espalhei minha intenção,
com tomilho e mostarda em combustão.

Na frigideira o calor se deu,
com azeite e desejo, o fogo cresceu.
Te selei, carnudinha, com devoção,
2 a 3 minutos em cada posição.

Você gemia em crepitar sutil,
selada em fogo alto, amor febril.
Seus sucos trancados no meu querer,
rosada, quente, pronta a ceder.

Ao forno te levo, 200 graus no termômetro,
termóstato 6-7, entre a carne e o centro,
20 a 30 minutos de espera aflita —
meu coração cozinha, a alma grita.

Te kiss malpassada, leve e suada,
a 50 graus, sua carne encantada.
Te retirei enfim, do forno em brasas,
e embrulhei seu corpo em papel de asas.

Descansou amor, 15 minutos no véu,
a carne, sossegada, voltou ao céu.
Te cortei então em medalhões de afeto,
1 cm de espessura, prazer discreto.

Te apertei — ah, carnudinha — sem dor,
macia estava, rosada em ardor.
Te servi com quentes batatas e vinho,
molho de roquefort, toque indecente.

Deglacei a frigideira do pecado,
com vinho tinto e um caldo ousado.
E ali, na mesa, foi oração,
carnudinha rosada, em adoração.

Seu gosto ficou na minha memória,
como um poema — quente — de nossa história.

quarta-feira, 16 de julho de 2025

Superabundantia

Superabundantia

Subi pra cima num passo torto,
fingi ter norte, fingi de morto.
Desci pra baixo, busquei razão,
achei descaso, perdi a mão.

Entrei pra dentro com fé no verbo,
tudo tão claro… mas meio acerbo.
Saí pra fora num grito mudo,
conviver junto? Já deu de tudo.

Mais melhor era o nosso afeto,
todo enrolado, mas tão direto.
Repeti novamente a tal verdade:
certeza absoluta é só vaidade.

E o elo de ligação, tão forte,
virou ruído, virou transporte
de frase feita, de pensamento
que só caminha quando está lento.

E assim, com rima meio à toa,
a lógica cai, a língua voa,
e o mundo gira como provou:

Tem, mas acabou.

terça-feira, 15 de julho de 2025

Levanta-me

Levante-me!

Começa-se com
200 gramas de biscoito champanhe,
durinhos como mamilos arrepiados.
Reserve.

Em outra tigela,
duas vontades se separam:
gemas e claras —
como carne e alma,
como o desejo e o gesto, às vezes.

Bate-se as gemas com ½ xícara de açúcar
(como quem escreve uma carta longa e suada)
por três minutos, ou até virar creme claro,
daqueles que lembram o sol entre os lençóis.

250 gramas de mascarpone
vêm depois,
feito corpo que se oferece sem perguntas.
Misture,
até que o homogêneo nos confunda.

Agora, as claras.
Bata com uma pitada de sal,
com cuidado,
com desejo contido.
Elas subirão em picos —
firmes, mas delicados,
como arrepio bem guiado.

Incorpore-as ao creme
sem pressa,
com espátula e paciência.
Não quebre o ar.
Não quebre o encanto.

Num prato raso,
misture 1 xícara de café frio
com duas colheres de Amaretto (pra um pouco mais de pecado).
Molhe os biscoitos —
rápido, como beijo roubado.
Eles não devem se entregar de vez.

No fundo de um refratário
(20 por 20, ou o que couber na sua fome),
faça a primeira camada:
biscoito.
Depois, uma camada de creme.
Repita.
Repita.
Até não haver mais escolha
além do fim.

Cubra.
Leve à geladeira.
4 horas, pelo menos.
Ou deixe a noite passar
com seus ruídos de saliva e espera.

Na hora de servir,
um toque final:
cacau em pó polvilhado
pela peneira do desejo.

Sirva gelado.
Com olhos fechados.
E alguém disposto
a lamber os cantos do prato
com gosto.


Receita Fetiche

Receita fetiche

Pegue 800 gramas de alcatra,
corte em cubos, sem mantra.
Que a vida não vem com receita,
mas às vezes, a carne é perfeita.

Três cebolas grandes, chore sem pudor,
são lágrimas doces — não é amor.
Dois dentes de alho na dança entrarão,
e os cheiros antigos logo despertarão.

Duas colheres de páprica doce,
me disseram que ardor é fofo se trouxe.
Uma de páprica picante também,
pra lembrar que a doçura às vezes faz bem.

Cominho? Uma colher de chá.
Nem sei o porquê, mas deixe lá.
É o toque sutil do desconhecido,
aquele gosto que vem quando menos sentido.

Quatro batatas, em cubos, chegarão,
no fim do processo, elas se juntarão.
Quinhentos de caldo de carne quente,
banha os pedaços — tudo envolvente.

Duas folhas de louro, enfeitadas,
como cartas velhas não enviadas.
Três colheres de azeite, calor que não mente,
o amor cozinha mais lentamente.

Sal e pimenta, a gosto — cuidado!
Que o excesso pode ser pecado.
Salsinha picada, só no final,
pra fingir que o prato é saudável e tal.

Cozinha em silêncio, fogo discreto,
um verso mexido, um tempo correto.
Com pão ao lado e fome no olhar,
sirva com afeto, sem precisar explicar.

Mas se for brindar, que seja direito,
nada de espuma com gosto suspeito.
Cerveja de rótulo triste, sem fé?
Dispense. Recuse! Se for da AMBEV, não é.

A Grande Esfera do Destino

A Grande Esfera do Destino

Em um vilarejo enclausurado por cogumelos gigantes que pulsavam luz ao menor toque e cilindros de borracha erguidos como colunas de um templo estranho, vivia uma comunidade que, à sua maneira, conhecia a harmonia.

Chamavam-se Termieten. Não por escolha — mas por natureza.

A sociedade era rígida e perfeita. Uma monarquia sem soberano. Havia um rei, uma rainha — mas nenhum deles governava. Eram símbolos vivos, repositórios da experiência ancestral. A comunidade funcionava como um organismo. Operários, soldados, reprodutores — cada casta sabia seu papel. Ninguém mandava. Ninguém desobedecia. Todos trabalhavam para o bem comum. Havia ordem, e nisso, paz.

Falava-se ainda dos alados — uma casta mítica, de membros raros, com asas delicadas e destino incerto. De tempos em tempos, um ou outro alado partia em busca de terras mais férteis, menos barulhentas, onde talvez a Esfera não alcançasse. Nenhum jamais voltava.

Apesar de não haver chefe, castigo ou coerção, havia uma única regra — não escrita, mas inquestionável — que todos seguiam como se fosse lei ancestral:
Jamais subir ao além entre dez da manhã e meia-noite.
Não por medo. Mas por sabedoria. Contava-se que, se algum Termieten ousasse subir durante o tempo da Esfera, mesmo que voltasse ileso, toda a comunidade sucumbiria em poucas horas, sufocada por uma força invisível, incompreensível, letal.

Foi então que Feline — embora seu nome oficial fosse Emma, como tantas outras — cedeu à dúvida. Curiosa, audaciosa, exausta da rotina, cansada da serragem e da obediência, decidiu que ver a Esfera de perto era mais importante que qualquer aviso.

Feline estava no fim da adolescência, aquela fase em que o mundo parece mais estreito do que realmente é. Era rebelde, inconformada. E naquela sexta-feira, por volta das sete e quarenta da noite, subiu ao além — ainda sob efeito da serragem fermentada, que havia exagerado na noite anterior. A cabeça girava, mas os olhos ardiam com excitação e o coração batia como nunca antes.

No além, tudo era luz e caos. A Esfera rugia, batia, ricocheteava. As plantas gritavam, os cogumelos pulsavam em estalos de luz. O chão tremia, vibrava.

E então ela viu: um monstro colossal, de braços estendidos — como se os usasse para controlar o universo — olhos vidrados, tentava evitar que a Grande Esfera do Destino caísse no limbo. Quando falhava, o titã ativava um dispositivo que lançava outra esfera no além, reiniciando o ciclo. Era uma dança frenética, absurda, sem sentido aparente — e ainda assim, hipnotizante.

Feline se escondeu, observou, e depois desceu.
Ilesa.

Ninguém soube.
“Lorota do rei”, pensou.
E dormiu.

Dois dias depois, o ar mudou.

Primeiro, um incômodo leve, quase imperceptível. Depois, a opressão. Os soldados desmaiavam. Os operários erravam seus turnos. A rainha silenciou. Os últimos alados tentaram levantar voo — mas o ar já não sustentava mais nada.

Um a um, os Termieten tombaram.

Feline, a última, rastejou até o centro do vilarejo. Olhou para cima, tentando respirar. Sentiu o peso do além sobre o peito. E então, caiu.

A máquina continuou a piscar.
Ela só para de meia-noite até as dez da manhã.

E os clientes fumavam, conversavam, riam, enquanto a Grande Esfera do Destino seguia seu curso, incansável, lançada de um lado a outro dentro de um velho fliperama, num coffee shop em Amsterdã.

Tilt.

domingo, 13 de julho de 2025

Dominica magicum

Dominica magicum

Domingo azul. A tarde, um pano leve,
bailava em sete tempos, desconcerto.
No parque, o som — quarteto — vinha aberto,
e a brisa dava tom à vida breve.

Improvisava o céu, num quase outono,
as nuvens riam jazz por entre os galhos.
Verdinho do bom — sossego entre os trabalhos —
soprava um mundo em paz, sem dono ou trono.

No Parc Floral, seus olhos — meus amores —
tinham o brilho exato da manhã.
Palavras? Não. Bastava-me o fulgor.

Ficou no tempo esse acorde de flores,
um compasso guardado em hortelã,
só ouvido por quem escuta amor.

Iaponicus-Romanus

Iaponicus-Romanus

Fulget caeruleum

Anima tactu tremit

Mulier gemit 



*O azul fulgura
A alma treme ao toque
A mulher geme

sábado, 12 de julho de 2025

Collegae laboris

Collegae laboris

Mbappé voa.
Henrique (Dourado) cabeceia.
Ambos jogadores,
mas só um joga.

Matuê solta beat,
Nelson Freire segura o tempo com os dedos.
Ambos músicos —
um com autotune,
o outro com a eternidade.

E no fim,
o Matuê tem mais dinheiro,
mais views,
mais gritos.

É como se Henrique Dourado
fosse mais celebrado
e mais bem pago
do que o Mbappé.

E a gente finge 
que isso faz sentido.

Sabbatum magicum

Sabbatum magicum

Azul derrama-se em silêncio
sobre o parque que respira devagar.
Nada começa nem termina,
só se move.

A nana formosa ao lado sorri,
suas auréolas rebeldes
parecem reagir à vibração de Ravel
ou talvez ao feromônio que exalo…

Aloe vera gelado,
frescor vegetal que percorre por dentro
e inventa caminhos novos,
o torto num crescendo inevitável!

O ar é floral,
não por metáfora —
por simples evidência.

Sativa sopra ideias em espirais,
a grama escuta tudo,
e os corpos se permitem
uma pausa sem culpa.

Cordas em sussurro,
piano em gotas de âmbar,
harmonia em delírio solar,
a dança escapa leve,
num compasso que dissolve o tempo.

Festival de olhares,
de tempo frouxo,
e de instantes
que não pedem legenda.

quinta-feira, 10 de julho de 2025

Fritz o gato

Fritz o gato

Fritz não é pet, é outro tipo de ser —
colocataire que só sabe acolher.
Não paga aluguel, nem lava o chão,
mas tem seu valor: e não é de ilusão.

Tem inteligência que lembra um cão,
e um toque de gato em cada ação.
Limpo, elegante, dorme em posição
que parece ensaiada pra exposição.

É base harmônica quando repousa,
um ronronar suave que tudo acalenta.
Mas se algo o inspira, em plena ousadia,
solta um miado — jazz na melodia.

É cão no afeto, sem baba, sem cheiro,
me espera na porta, fiel companheiro.
Me escuta subindo, já fica a postos —
parece até dono, com olhos expostos.

Mas tem o mistério que só gato tem,
desaparece no ar, volta zen.
É leal sem grude, é livre com norte,
me dá companhia sem trancar a sorte.

Caça o que voa, o que rói, morde e não dói,  
derruba objetos com patadas educadas.  
É artista da casa, terapeuta felino,  
com alma de cão e olhar cristalino.

Dá despesa? Quase nenhuma. E se for somar,
vale cada grão que vem do jantar.
Pois onde há um Fritz, há riso, calor —
há música viva e um tanto de amor.

quarta-feira, 9 de julho de 2025

Lettre ouverte (un éclat consigné)

Lettre ouverte

(Un éclat consigné)

Cher maçon,

T’as déjà pris une seconde pour te demander comment un type comme toi — avec cette tronche, ta calvitie qui n’a jamais eu de panache, ton ventre qu’on dirait hérité d’un autre siècle, ton absence cruelle de culture et de conversation — a pu, ne serait-ce qu’un instant, croire que t’étais à la hauteur d’une femme comme elle ?

La réponse est simple : elle était désespérée.

À ce moment-là, j’étais là sans y être vraiment. Elle cherchait un peu de douceur, de réconfort, quelqu’un qui l’emmène dîner de temps en temps, qui sorte un portefeuille un peu plus rempli que ta tête. Tu lui as offert ce vernis. Elle s’en est contentée. Un temps.

Mais toi, t’as cru que t’avais décroché le gros lot…

On se connaît depuis 1995. Seize ans de vie partagée. Trois enfants. Des hauts, des bas, de vraies épreuves. Toi, t’étais une parenthèse, un faux espoir, un détour. Et malgré ça, t’as duré. Bien trop longtemps.

Et maintenant, voilà que tu t’attaques aux enfants.
Ton message, on l’a vu — merci le contrôle parental ! Manipuler les gamins pour tenter de la récupérer, c’est non seulement misérable, mais profondément lâche.

T’as franchi une ligne.

Si t’étais un peu plus que ce masque que tu portes — un peu plus qu’un décor emprunté à la maison de campagne de tes parents, aux bateaux de tes potes ou à leurs chalets bien placés — tu saurais que ce genre de manigance ne fait que tout détruire autour de toi. Et que jamais, au grand jamais, elle ne reviendra pour ça, même si cela te permet encore de les voir de temps en temps.

Alors, fais-toi un vrai cadeau pour une fois dans ta vie :
Réfléchis — même si ce n’est pas ton fort —, comprends que tes petites magouilles ne te mèneront nulle part… et recueille-toi dans ton insignifiance.

Bonne continuation.

quarta-feira, 2 de julho de 2025

Erithacus rubecula

Erithacus rubecula

Azul
como o susto nos olhos de Kongens Have às três da tarde,
quando o esquilo salta do galho para a sua lembrança.
Blotter paper — universo dobrado ao meio,
um origami de memória escandinava,
onde o verdinho não é mato,
mas suspiro de Romkugler derretido na boca.

250 μg de saudade,
via oral,
com um copo d’água lunar.
Modal: flutuação intermitente entre o delírio e a ciclovia.
27 graus na sombra do infinito, celsius.

Rosemborg não é castelo,
é órgão interno —
a resina de flor que recobre o pulmão esquerdo dos seus sonhos.

E.S.P.
três letras flutuando no ar morno da grama,
como se alguém as tivesse deixado cair de propósito,
num tempo difícil de bater.

Amarelo,
a cor que resta quando a infância evapora
na bicicletinha embaixo da língua no começo da tarde.

Azul.
Não se esqueça do azul.
Ele é a primeira palavra da sua última frase.

terça-feira, 1 de julho de 2025

Blå sommer

Blå sommer

Verão azul, suor de gelo nas costas da aurora,
o asfalto canta em dinamarquês antigo,
e wienerbrød derrete em bocas de neon,
onde os dentes sorriem em código rúnico.

Potranca de porcelana, rebola entre as frestas do fiorde,
cachos de fogo dançam tangos em catedrais de espuma,
cada espiral é um segredo escandinavo,
bordado por deuses bêbados de aquavit.

Olhos de esmeralda abrem portais nos becos de Christiania,
onde a guitarra arde com um jazz nórdico —
um lobo toca saxofone em trêmulos compassos
e as coxas da noite cruzam-se em sustenidos.

White Widow sopra seu feitiço em Katrina,
que morde as horas com língua de âmbar,
e na Rua Pusher os relógios se despem,
marcando a eternidade com seus passos, fri.

Um cão viking lambe o tempo entre as pedras,
e um barco de fumaça parte do meu peito.
Tudo é verão,
tudo é azul.

E as curvas posteriores de Katrina 
vão se diluindo em passos leves, 
até se tornarem um sussurro no horizonte.
Hej og farvel!