quarta-feira, 2 de julho de 2025

Erithacus rubecula

Erithacus rubecula

Azul
como o susto nos olhos de Kongens Have às três da tarde,
quando o esquilo salta do galho para a sua lembrança.
Blotter paper — universo dobrado ao meio,
um origami de memória escandinava,
onde o verdinho não é mato,
mas suspiro de Romkugler derretido na boca.

250 μg de saudade,
via oral,
com um copo d’água lunar.
Modal: flutuação intermitente entre o delírio e a ciclovia.
27 graus na sombra do infinito, celsius.

Rosemborg não é castelo,
é órgão interno —
a resina de flor que recobre o pulmão esquerdo dos seus sonhos.

E.S.P.
três letras flutuando no ar morno da grama,
como se alguém as tivesse deixado cair de propósito,
num tempo difícil de bater.

Amarelo,
a cor que resta quando a infância evapora
na bicicletinha embaixo da língua no começo da tarde.

Azul.
Não se esqueça do azul.
Ele é a primeira palavra da sua última frase.

As escolhas de Simone

As escolhas de Simone

Simone é goiana. Tem 48 anos, mas nem parece: corpinho de 35, rostinho também. E ideias que pararam em 2020, num grupo de WhatsApp que virou fonte de sabedoria universal. Esteticista experiente, com prática de sobra — sem diploma, mas com autoridade conquistada entre escovas progressivas e desabafos de clientes fiéis no salão Karmel, no Jardim Curitiba, em Goiânia.

Bolsonarista de raiz. Fez estoque de cloroquina como quem prepara kit contra a gripe espanhola. Acredita que o mito é honesto, perseguido, mártir sob toga alheia. Que o Brasil vive sob a ditadura do Xandão. E que chama o atual presidente, claro, de “molusco”. Mas não podemos julgá-la. Simone não teve acesso ao estudo como deveria, e prefere confiar nos vídeos de três minutos com trilha épica e dublagem fanhosa do Zap do que em fatos, contextos ou evidências. E sejamos francos: tem muita gente, com mestrado e acesso à biblioteca digital, presa no mesmo delírio coletivo de fakes e convicção.

Simone escuta sertanejo. Mas daqueles que passam a léguas de distância do rancho fundo — aquele que fica bem pra lá do fim do mundo. O dela é o de balada, da Hilux com som estourado, dos amores líquidos com refrão grudento. Sertanejo gourmet, com pitada de autotune e dor reciclável. Ainda assim, chora. Porque todo mundo tem seu tipo de saudade.

Frequentava, de vez em quando, a igreja Renovada Sangue & Fogo — nome de seita escatológica ou de marca de carvão ungido. O tipo de templo onde se amaldiçoa a esquerda, o feminismo, a arte moderna e a cor vermelha.

Foi para fugir do comunismo — essa entidade mitológica que assombra grupos de Zap e manchetes da Brasil Paralelo — que Simone e o marido decidiram sair do Brasil. Tentaram a “maior democracia do mundo”, claro. Sonhavam em apertar a mão do Pateta, e talvez uma selfie com a Estátua da Liberdade legendada: “livres, enfim”.

Não conseguiram. Resolveram ir para o “velho mundo” — será que, se cherokees, incas ou tupis-guaranis tivessem cruzado o marzão doido antes do italiano que servia a reis da Espanha e “descoberto” a Europa, chamariam de “novo mundo”? — não sei por que cargas d’água não foram para a Guiana Brasileira, na Península Ibérica. Terra tomada por brasileiros crentes, bolsonaristas, e cheia de pão barato, vinho em promoção e aluguel inflacionado por Airbnbs e ex-pentecostais. Escolheram a França.

Logo a França! A pátria do sindicalismo, da greve institucionalizada, do Macron — que pra Simone é socialista, globalista e suspeito. Foram parar em Ivry, no subúrbio sul de Paris. Sete quilômetros da praça da República e a um abismo simbólico da torre Eiffel, que Simone viu uma vez e achou “uma antena grande demais” — e nunca mais voltou a Paris. Tem medo do metrô. Medo de ser assaltada. Medo do comunismo, sempre ele.

Sem documentos e sem francês, conseguiu trabalho no By DDOSKY, um salão afro da vizinhança onde ninguém é declarado, mas todo mundo se vira. Simone, branca, de cabelo liso cor de jabuticaba, trançava como veterana. Foi aceita, porque em cabelo — como na vida — vale mais a destreza que a certidão.

Come coxinha no Copacabana Burger (em Ivry!) e bebe Brahma. A coxinha, tudo bem. Mas Brahma, na França? Matar saudades da terrinha com coxinha, eu entendo — mas com cerveja da AMBEV?

Só anda com brasileiros. O francês? Nada além do “merci” murmurado, como se tivesse vergonha de pronunciar vogal nasal e medo da língua obscena e encantatória de Mallarmé. Vive em Ivry como se fosse Goiânia — só que com metrô (que ela não usa).

Dois anos depois do desembarque heróico em Orly, o marido — são-paulino, bebedor de Brahma, distribuidor ocasional de tabefe — sempre que exagerava na cerveja e o tricolor perdia — arranjou uma senegalesa elegante, poliglota e de olhar fatal. Foi embora. Agora ameaça levar a filha.

E Simone? Simone resiste. Entre escovas, memes de indignação patriótica e a certeza inabalável de que o mito vai voltar — mais forte, mais honesto, mais blindado contra o comunismo imaginário.

Simone… será que não dava pra errar um pouco menos?

Mas falar isso pra ela é perigoso. Pode ser que ache que sou comunista. Ou pior: um agente infiltrado da revista Fórum.

terça-feira, 1 de julho de 2025

Blå sommer

Blå sommer

Verão azul, suor de gelo nas costas da aurora,
o asfalto canta em dinamarquês antigo,
e wienerbrød derrete em bocas de neon,
onde os dentes sorriem em código rúnico.

Potranca de porcelana, rebola entre as frestas do fiorde,
cachos de fogo dançam tangos em catedrais de espuma,
cada espiral é um segredo escandinavo,
bordado por deuses bêbados de aquavit.

Olhos de esmeralda abrem portais nos becos de Christiania,
onde a guitarra arde com um jazz nórdico —
um lobo toca saxofone em trêmulos compassos
e as coxas da noite cruzam-se em sustenidos.

White Widow sopra seu feitiço em Katrina,
que morde as horas com língua de âmbar,
e na Rua Pusher os relógios se despem,
marcando a eternidade com seus passos, fri.

Um cão viking lambe o tempo entre as pedras,
e um barco de fumaça parte do meu peito.
Tudo é verão,
tudo é azul.

E as curvas posteriores de Katrina 
vão se diluindo em passos leves, 
até se tornarem um sussurro no horizonte.
Hej og farvel!

Alerta vermelho

Alerta Vermelho

Três da tarde, 37 graus aqui na cidade luz. Primeiro de julho, comecinho do verão. Paris tem um clima oceânico temperado – com fleur de sel, poivre e mostarda de Dijon, claro. O que é outro jeito de dizer que costumava ser suportável.

Hoje, no entanto, o termômetro se derrete junto com as certezas climáticas e os sorvetes de pistache do Marais. Na sombrinha do ponto de ônibus, uma senhora abanando o pescoço com o Charlie Hebdo sussurra em francês: “C’est pas normal”. Pois é. Nem aqui, nem lá.

Cresci em BH, nos anos 80, no verão de lá, me lembro que fazia muito calor. O chamado clima tropical de savana – calorzinho limite sacana. Aquele que grudava a camiseta nas costas igual promessa de campanha depois da eleição. Íamos para o clube, eu, meus irmãos e amigos, e ficávamos na piscina até os dedos ficarem como os da Dona Odete, da mercearia do bairro – enrugados e cheios de histórias mal contadas.

Lembro do sol batendo no cimento quente, do Chica-bon derretendo mais rápido que paciência de mãe, e do som dos chinelos arrastando. Isso era verão. E mesmo assim, havia sombra, havia noite fresca, havia um certo alívio depois do Jornal Nacional.

Depois, tenho a impressão de que só foi esquentando, a cada ano. O verão passou a ser um parente inconveniente que chega cada vez mais cedo e com mais bagagem térmica. Na última vez que estive lá no verão, quando ainda era casado, dava um jeito de escapulir no meio da tarde, e pegava uma senha na Caixa, ali na Guaicuí, para desfrutar tranquilamente do ar-condicionado – obrigatório nos bancos desde que me entendo por gente – e ler um bom livro. Ar-condicionado e literatura: dupla de salvação nacional.

Não tenho lembranças exatas das temperaturas durante minha infância, mas me lembro do termômetro – aquele com propaganda de cigarro – que tinha em frente ao Palácio das Artes, marcando 33 graus, no final do ano, fim dos anos 80. Ironia fina: enquanto as crianças se bronzeavam na piscina, os adultos acendiam um Derby Light, à sombra da cultura.

Já em 2015… na praça Tiradentes 38 graus! E o mesmo termômetro agora patrocinado por um laboratório de ansiolítico. Um avanço.

Na França, dizem que o calor é mais civilizado. Mentira perfumada com lavanda. Em 2003, passei um calor da porra aqui, e aprendi uma nova palavra: canicule. Bonita até, né? Parece nome de sobremesa. Mas é só o inferno dizendo bonjour. No começo de agosto, o termômetro da farmácia perto do meu trampo, na praça Victor Hugo, marcava 39,5 graus.

Victor Hugo, inclusive, teria suado os bigodes se ainda estivesse por aí.

Mas não era assim todos os dias, graças às Deusas! Ainda havia brisas tímidas, uma ou outra chuva educada. São diferentes os verãos. Apesar de picos semelhantes, o ar é diferente. Aqui chove pouco. Tem menos ar-condicionado, mas também menos dias de calor insuportável. Ou, tinha.

Hoje, alerta vermelho. Literalmente. A prefeitura recomenda que os velhinhos fiquem em casa e que ninguém se emocione demais no transporte público. Porque emoção dá suadouro, e suadouro agora pode ser fatal.

Conclusão: o aquecimento global existe. E não é teórico, não é estatístico, não é abstrato como tese de mestrado em climatologia. É concreto, é suado, é queimadura de primeiro grau na pele e de segundo na consciência.

E pensar que teve gente que, até ontem, chamava isso de “ciclo natural”. Ah, sim. Natural como um prédio pegando fogo porque alguém achou que vela era energia limpa.

Três da tarde, 37 graus.

Paris derretendo aos poucos, igual camembert esquecido na sacola do Carrefour.

E eu aqui, olhando pro céu sem nuvem, pensando se o fim do mundo virá com fogos ou com fuligem. Enquanto isso, a cidade, sempre tão elegante, tira discretamente o paletó.

Como quem diz: não era isso que eu esperava da humanidade, mas tudo bem.