ex cineribus
trinta anos de álcool
todo dia
não era vício
era liturgia
falava merda
fazia pior
quem via de fora
achava um show de horror
por dentro era só um poeta
caindo de copo em copo
no palco da sarjeta
esposa avisava
escola notava
e eu?
só brindava
aí procurei
um addictologue
(um tal de especialista em dar nome bonito
pra quem já se afoga no próprio grito)
dois addictologues
uns psiquiatras
remédio pra depressão,
mais remédio pra aguentar o remédio da depressão
era álcool desde pequeno
pra curar o existencial veneno
pra suportar a introspecção
de quem nasce perguntando
e morre sem explicação
perdi o emprego
perdi o sossego
e a mulher que era vida
me botou na corrida
filho no colo
e eu zumbi
voz de bêbado
sem estar bêbado
caminho torto
olhar sem fim
fui parar na terra natal
passagens pagas por um amigo-irmão,
um porto seguro em meio ao tufão,
um tio legal
e uma tia torta
que era reta no final
a mala com remédio sumiu
milagre:
falei direito
andei direito
ri de novo
e quase virei sujeito
comecei um balanço
desses que doem sem ser dança
um inventário de essência
com pitadas de esperança
mas o corpo, esse traidor
começou a cair de novo
pernas em greve
língua em slow motion
cerebelo no chão
hospital:
quatro meses
uma estação
um inverno no coração
aí, do nada
quatro dias de alta
veio a última cicatriz
meu filho mais velho
caiu, enfim, do alto do que já não se diz
não se matou — nem quis
um pouco de paz
nos braços sutis
dos opiáceos e ansiolíticos
que a vida oferece
a quem já não crê na mesmice
de tanta dor que a vida quis
(12 anos antes, já o tinham matado
quando mataram sua mãe atriz)
recaída?
não.
já tinha caído demais.
a perda era menos que o perder
porque perder mesmo
foi vê-lo sofrer
e eu?
fênix.
não dessas de filme
nem tatuada no ombro
mas dessas que riem
com um copo d’água na mão
e um poema no escombro
sereno
resolvido
alegre
fênix,
com f minúsculo,
porque a dor já é grande demais