quinta-feira, 29 de maio de 2025

Definição

Definição 

Conservador, no dicionário da dor,
é o que teme o amor com outro sabor.
Chama-se “reto”, mas vive torto,
fecha-se ao novo, prega o aborto—
mas só da ideia, do afeto alheio,
do beijo queer no meio do recreio.

É misógino de missa e de machete,
xenófobo em inglês com sotaque de sete.
Faz do racismo seu pão com manteiga,
ri da tragédia, mas chora se o boi se esfrega.

Transfóbico? “Só defendo a família!”
Ignorância empilhada em empilhadeira de milha.
Canta o hino como se fosse oração,
mas reza por armas com devoção.

Tão seguro de sua moral de caverna,
que ao ver um arco-íris, tranca a perna.
Não lê, não ouve, não quer entender—
só quer um país onde possa bater.

Intolerante por dentro e por fora,
confunde “valores” com a lógica da espora.
Tem nojo de tudo que não controla,
mas treme ao ver um beijo em sua escola.

Sinônimo? Maldoso. Antônimo? Razão.
Conservador é quem tem medo do coração.
Acha-se guardião de um tempo passado
que nunca existiu… só foi inventado.

quarta-feira, 28 de maio de 2025

Pecoris Dominus

Pecoris Dominus

Era um capitão sem honra nem glória,
de chute no traseiro fez-se história.
Do exército, expulso por trambique,
virou deputado, mais morto que chique.

Trinta anos no baixo clero mofando,
sem projeto, sem fala, só berrando.
Comprou imóveis com grana no dente,
mas pro povo? Um sorriso indecente.

Presidente! Que prêmio irônico!
Fez do país um circo agônico:
armou a plebe, blindou milionário,
matou de riso — ou de vírus — o otário.

A cloroquina virou hóstia santa,
e a morte, estatística que não espanta.
Negou a ciência, o luto, o cuidado,
chamou de marica quem tinha chorado.

Rachadinha? É só um detalhe,
como um palavrão em oração de Natal.
Misógino, racista, homofóbico,
mas sempre com um tom patriótico.

“Deus, pátria e família!”, berra o gado,
sem saber que é slogan do passado
de botas, porretes e tortura,
mas vai lá, né? Fé não tem fissura.

Agora réu, que trama bonita:
golpe de Estado em noite bendita!
Se preso for, virá mártir sagrado,
com crucifixo e fuzil do lado.

E quem o segue? Triste fauna.
Ou burro, ou mau, ou alma insana.
Mas como o Mito é combo completo,
o gado olha e diz: “É o espelho certo!”

Assim, entre gritos e fake news,
vai-se o país, de joelhos e sem luz.
E o futuro? Vai rimar com “lixo”,
se não jogarmos esse verme no esquicho.

Injustiça

Injustiça 

— Papai, me diz com clareza,
por que quem limpa a sujeira
tem sempre a cor da tristeza
ou da madeira?

Fiquei mudo uns segundos,
tentando o nó desatar:
há cores herdadas do mundo
que ninguém quis trocar.

Expliquei com tom sincero,
sem pesar nem fingimento:
— Filha, o sistema é severo,
pinta a cor com sofrimento.

Quem nasce perto do trono
não esfrega chão nem pia,
mas quem tem tom de outono
nasce varrendo o dia.

Não é que seja destino,
ou falta de vocação:
é que o mundo é um moinho
que mói gente na estação.

Distribui mal os lugares,
marca cedo quem vai servir,
e fecha os mesmos altares
pra quem só quer existir.

— Mas isso é justo, papai?
— Nem um pouco, meu amor.
Só que o costume distrai,
e a injustiça tem cor.

Mas sua pergunta, menina,
já faz brotar rebeldia:
quem pensa, muda a rotina,
mesmo com rima vazia.

Quem sabe um dia, Florzinha,
quando for grande, então,
ninguém mais lave sozinha
a sujeira da exclusão?

terça-feira, 27 de maio de 2025

Vermes de gravata

Vermes de Gravata
(um poema para quem ainda crê na palavra)

No pódio da infâmia sobem sorrindo,
Hitler à frente, já prevenindo
o que viria com tanto esmero:
Mussolini, Milei, Bolsonaro — o zero.

Netanyahu reza bomba em escola,
Trump bate palma, a verdade se enrola.
Meloni costura com linha fascista,
Orbán fecha a porta e rasga a pista.

Bukele vigia com olhar de Big Brother,
Zemmour recita o ódio do outro.
Farage, Le Pen — versão detergente:
“limpeza étnica”, mas dita “gente”.

E surge Musk, num foguete dourado,
vendendo o céu, pisando o legado.
Faz da liberdade uma ação na bolsa
e empacota o mundo numa “graciosa” bolsa.

São muitos nomes, a mesma ração:
ignoram cultura, ciência, razão.
Desprezam respeito, pisam na escola,
vendem justiça, embrulham e embolam.

Humanismo? Pra eles é praga.
Verdade? Só a que o algoritmo propaga.
Igualdade? Só se for de mercado.
E quem pensa diferente é cancelado.

Mas eis que o povo, o tal “cidadão”,
que sonha com ordem, mas ama a prisão,
aplaude, vota, marcha, delira —
com quem o despreza e depois o retira.

Será burrice? Falta de estudo?
Ou pacto assinado com algum deus mudo?
Talvez um combo: ignorância e maldade,
com molho de medo e falsidade.

E nós? Poetas, loucos, ateus e artistas,
seguimos a gritar em pistas mistas.
Porque a palavra, mesmo cansada, resiste —
na contramão dos vermes que ainda existem.

Vermes de gravata (curto)

Vermes de Gravata

Hitler sorri no retrato gasto,
Mussolini acena do mesmo pasto.
Trump, Milei, Bolsonaro, Meloni,
vestem de novo o velho demônio.

Netanyahu reza com míssil na mão,
Orbán censura, Bukele vigia,
Le Pen promete “proteção”,
mas só pra quem pensa igual à família.

Zemmour, Farage, o tom é o mesmo:
ódio embrulhado num nacionalismo a esmo.
E Musk? Vendendo o céu a prazo,
enquanto a terra apodrece em seu atraso.

Educação, cultura, ciência, respeito…
são palavrões no dicionário estreito.
E o povo, perdido, bate continência
a quem transforma medo em conveniência.

Burrice? Maldade? Ignorância em bloco?
Ou um coquetel que nos leva ao sufoco?

Poetas gritam, artistas resistem.
Enquanto esses vermes ainda persistem.

O bicho homem

O bicho homem 

Tudo começou com pedra e pontaria,
na pré-história da anatomia.
Era caça, era fome, era instinto,
ninguém falava em “pecado” ou “extinto”.

Aí veio o arco, a flecha, a mira,
mais proteína, menos mentira.
Matava-se bicho, e não opinião,
ninguém explodia por religião.

Mas bastou o bronze, bastou o ferro,
e o homem fez do irmão seu desterro.
Inventou a guerra, a espada, o escudo,
e esqueceu o gosto do fruto maduro.

A pólvora, então, soprou da China,
fez do monge um franco-atirador na esquina.
Mosquetes, canhões e cruzadas loucas —
por um “amém”, cabeças ocas.

No XIX, metralha e repetição,
a fábrica virou confissão.
No XX, com tanques e bombas nucleares,
fez da Terra um lote de bazares.

Hoje, com drone, com chip, com senha,
a bala pensa e a bomba desenha.
Islamista mata desenhista, sem remorso,
por Alá — ou pelo ócio. Que esforço!

Judeu mata islamista, com razão herdada,
com Tanakh, com drone, com bala guiada.
E o ciclo gira, gira e se repete,
com fé, com farsa, com internet.

Tudo por terra, mulher, bandeira,
por um pedaço de chão ou de besteira.
E os crentes, de Bíblia ou Alcorão,
bradam pelo porte como se fosse salvação.

Ô bicho burro! Com tudo que sabe,
ainda se esconde atrás de uma labe.
Tem chip na mão, inteligência na nuvem,
mas não aprendeu que matar não é virtude.

Acha que é raça, é povo eleito,
mas fede a sangue, rancor e despeito.
E assim, armado, crente e confuso,
vai escrevendo o fim… com cartucho incluso.

sexta-feira, 23 de maio de 2025

Os sete haïkus

Os sete haïkus 

Haïcuzinho

Peitos que brilham,
Pezinhos mágicos dançam,
Bocarra sussurra.

Goza!

Bunda gostosa
cavalga sem piedade
ela esguicha, grita!

27%

Verdinho acende,
sativa dança no ar,
verso se revela.


Contrafilé

Sangue na língua
O bife exala calor
Renova a vida!

Dolce Italia!

Tiramisù treme
na colher que beija a boca
delírio se dá.

32%

Verdinho suave,
índica embala o sossego,
no tempo, repouso.

Desde 1921

Peito sagrado,
cinco estrelas brilham sol —
azul imortal.

quinta-feira, 22 de maio de 2025

(L)ouvado (S)eja (D)eus

(L)ouvado (S)eja (D)eus

O trem invade o útero da manhã,
lisérgico o doce, pulsa no escuro,
a lua lambe o sexo balzaquiana,
coxas abertas num convite obscuro.
Torto viril, meu grito mais impuro
esguicha entre dentes e porcelana.
Na língua, um beijo de fogo e lama,
no ventre, um espelho que não perdoa.
Cada gozo é relâmpago que ressoa,
rasga o real, e a razão se derrama.

Tankaqui

Tankaqui

Xoxota cabeluda
goteja azul, latejando,
minha alma enlouda.
Pezinhos de unhas vermelhas
masturbam minhas orelhas.

Surreaneto lambuzado

Surreaneto lambuzado 

Sorvete de banana entre as coxas dela,
derrete em silêncio, impudico e febril,
Luma de Oliveira, deusa paralela,
sorri como um vício dourado e infantil.

No kart do tesão ela voa em fumaça,
seios em flor, primavera selvagem,
a maconha estala, o tempo se enlaça,
língua e vulcão numa mesma linguagem.

Os pneus gritam versos no asfalto molhado,
o mundo evapora em aroma de gozo,
Luma cavalga o instante alucinado

com olhar de pecado e beijo venoso.
O piloto, feito louco, com a boca entreaberta,
degusto esse sonho que nunca desperta.

Terra rotunda est

Terra rotunda est

Mexerica eu conheci
na fila do supletivo.
Eu já meio fora de si,
ele com ar pensativo.

Nem fiz prova, nem fiquei.
Era cedo, eu já chapado.
E o que a escola não me dei,
a rua deu — bem parcelado.

Tocávamos violão,
mas com rumos diferentes:
ele fez do som missão,
eu tentava, entre acidentes.

Fui de baixo, fui de piano,
trompete, quem diria!
Nunca fui bom — não me engano —
mas a alma se perdia.

Ele, firme no dedilhar,
chôro puro, Garoto inteiro.
Eu deixava o jazz falar
numa escala sem roteiro.

Quase trinta, criei coragem,
fiz as provas de uma vez.
Peguei um voo, nova viagem:
Paris me abriu sua altivez.

Graduação, mestrado e vinho.
Lá fui aluno aplicado.
Mexerica, outro caminho:
doutorado — também em galo.

Ele veio, fez, voltou.
Nem nos vimos, veja só.
Cada um se graduou
do seu jeito, com seu nó.

Hoje a vida separou
as guitarras e os refrões.
Mas de longe ainda ecoou
nossa amizade em dois tons.

A Terra é redonda, irmão,
mas cheia de curva escondida.
E às vezes, sem previsão,
ela acerta… a nossa vida.

terça-feira, 20 de maio de 2025

Josué, o Patriota

Josué, o Patriota 

Imbrochável e fiel,
devoto de São Goodyear do anel,
seguiu os conselhos do mito genial
com cloroquina na mochila — essencial.

Montou no jetski da redenção,
rumo ao fim-do-mundo, com convicção,
pra encontrar Olavo e ouvir a verdade:
a fórmula pra salvar a liberdade.

Deu duas voltas inteiras na Terra,
cruzou oceano, deserto e serra,
e quando viu que não havia o fim,
suspeitou de um complô sem ter fim.

Parou o motor num gesto solene,
abriu a mochila com ar solitário e sereno,
tirou com fervor o objeto divino:
um pneu de scooter, modelo pequeno.

Ergueu a miniatura aos céus em ação,
pôs a mão no peito, cantou o hino com paixão,
e ao fim da última estrofe, rugiu com fervor:
“Malditos comunistas! Eis o terror!

Arredondaram a Terra, maldita trapaça!
Cadê o abismo, a borda, a desgraça?!”

E enquanto girava sem rumo e no cio,
jurava ter visto o mapa do Brasil no desvio,
e em cada onda gritava, sem qualquer razão:
“Cadê a borda?! Isso é fraude da eleição!” 


segunda-feira, 19 de maio de 2025

Sanctus Papa Futurus

Sanctus Papa Futurus


Estudo idiomas o tempo inteiro,

sou ateu, quase um missioneiro,

quem sabe um dia, por dom ou sorte,

não rola um conclave mais sem norte?


Se os tempos mudam com seu cheiro,

e o papa puder ser maconheiro,

chegarei pronto, bem consciente,

latim na boca e alma quente.

sábado, 17 de maio de 2025

Coincidência (?)

Coincidência (?)

Os remédios calavam minha alma,
nem cura traziam, só falsa calma.

Virei zumbi, sem dor, sem cor,
sem vontade, sem amor.

Até que um dia eu parei,
a mente acordou, a vida voltei.

Coincidentemente (?), as pernas vacilaram,
como quem ensaia passos que não se firmaram.

Meses depois, alma leve a sorrir,
as pernas recusaram mais de seguir.

A elocução ficou de bêbado,
sem ter bebido — estranho e súbito,
como se a mente tentasse falar,
mas a língua não conseguisse pronunciar.

Veio o diagnóstico, duro final,
cerebelo danificado, dano total.

Quatro meses em hospital,
saí mais lúcido, mente a mil.

Só bem depois, idiomas comecei a estudar,
e a fala voltou a se aprimorar.

As pernas melhoraram, leve sinal,
mas recentemente regrediram — coincidência afinal?

Enquanto o cérebro estiver a mil,
e o torto bem viril,
sigo, fiel e febril.

quinta-feira, 15 de maio de 2025

Apparentia fallunt

Apparentia fallunt

A maioria quer homem que banque,
grande, parrudo, com cara de tanque.
Bonito? Nem tanto, que isso passa,
mas que tenha grana — e nunca fracassa.

Cultura? QI? Bobagem! Coisa cansada.
Preferem alguém que pague a escapada.
Se for calvo, tudo bem,
desde que o saldo no banco vá bem.

Buscam também um bom pai de verdade,
mesmo que os filhos venham da metade.
Querem alguém que abrace a missão
de ser afeto, cuidado e proteção.

Os tais requisitos, todo mundo já viu:
que seja atencioso, não muito infantil,
carinhoso e doce no jeito de ser,
e que saiba, na cama, o que deve fazer.

Mas ela não era do time comum,
gostava de charme, de algo incomum.
Não quis um armário com músculos mil,
quis um que a olhasse além do perfil.

Ele era baixinho, magrelo, elegante,
com voz de veludo, olhar penetrante.
Andava com apoio, passos bambos no chão,
mas sem barulhinho — só discreta emoção.

Não tinha casa no campo, nem grana no cofre,
mas tinha bom gosto, conversa que sofre.
Sabia da vida, da arte, do som,
e um tempero na cozinha que dava um bom tom.

Cumpria o pacote dos quesitos sagrados,
aqueles que deixam corações acelerados:
gentil, respeitoso, com toque sutil
e talento escondido num torto viril.

Ser bom pai? Era. Mas isso nem veio
no topo da lista, no início do enredo.

Só que ela quis, logo ao primeiro jantar,
saber do seu rumo, de onde veio o andar…
Ele, sincero, contou resumido,
mas foi o bastante — e tudo foi ido.

Assustou-se com traços da vida vivida,
com dores, com perdas, com luta sofrida.
Achou que era drama demais pra lidar,
e foi embora sem sequer provar.

Do beijo prometido, do toque febril,
dos segredos quentes do torto viril.
Estava bom demais pra ser realidade,
e ela fugiu — por pura ansiedade.

Mas fazer o quê? Medo é vilão,
e ela fugiu do que mexe o chão.
Preferiu um pacote bem previsível,
com selfie no espelho e papo risível.

Ele, tranquilo, seguiu seu caminho,
com afeto, saber, sem precisar de vizinho.
E o talento guardado, sem causar alarido,
segue reservado pra quem faz sentido.

Porque o mundo é grande e, no seu quadril,
ainda há quem deseje o torto viril.

terça-feira, 13 de maio de 2025

Veritas Femina Est

Veritas Femina Est

Ah, essas deusas tão reais,
gente comum, mas geniais,
com graça, fogo e ternura,
clareiam nossa loucura.

Com afeto e lucidez,
sabem mais do que o que se vê,
misturam arte e tesão,
sabedoria e paixão.

Num mundo sob o comando
de um deus falso, fabricado,
são elas que fazem valer
o milagre de viver.

Graças às Deusas!

Tempus Renascentiae

Tempus Renascentiae

O homem bebia.
Desde os doze, talvez antes,
como quem aprende a escrever:
um gole, uma letra,
um trago, uma sílaba de gozo.
Bebia com os amigos
(com amigos se bebe),
bebia com as panelas fumegantes,
com o sexo suado,
com a música aos berros,
com os livros cheios de sombras,
com o trabalho febril de criar.
Bebia até com a solidão —
e ela, a solidão, virava companhia.

Trinta anos de goles.
Não era vício, dizia —
era sabor.
O álcool era o azeite das engrenagens,
o sol do domingo,
o beijo que molha o verso.

Mas um dia, o copo ficou na mesa.
Não por nojo, nem por fé,
mas por desamor do cérebro,
e amor por alguém.
Foi parando de beber
como se vai morrendo por dentro.
E parando de gostar.
Primeiro o riso, depois o bife,
depois a palavra.
A mulher da vida foi embora
e levou com ela
o último suspiro da alegria.

Vieram os doutores.
Receitaram cápsulas,
exorcismos químicos
contra o que chamavam de abstinência.
Mas os remédios criaram um zumbi:
olhos de vidro, mãos de algodão,
um pai tentando ser pai
na névoa de calmantes.
Só os filhos,
os quatro eternos sóis,
ainda aqueciam um canto da alma.

Ele dormiu por anos,
acordado.
O mundo era um filme sem cor
e sem som.

Até que um dia,
de tão cansado de não sentir,
abandonou os frascos e os jalecos.
Saiu à rua com sede —
não de álcool,
mas de qualquer gosto que lembrasse
que era vivo.

E foi provando:
o aroma do café quente,
o riso solto dos filhos,
o sopro de uma canção antiga,
o goulash feito com mãos próprias.
E mesmo quando a vida
lhe arrancou o primogênito
(e arrancou com os dentes),
ele não tombou.

Hoje caminha
sem muletas químicas,
sem a bengala dos bares.
Caminha, e sorri.
Come, ouve, ama, escreve.
E descobre, enfim,
que o prazer é um bicho
que sabe viver melhor
sem álcool no sangue
ou fantasmas na mente.

O homem se curou.

segunda-feira, 12 de maio de 2025

Lux Nova

Lux Nova

Foi num concerto erudito e imponente
(Vila-Lobos, Bartók — noite exigente)
que vi aquela dama, bela como um tema raro,
com olhos que pareciam tocar um Fauré bem claro.

Trocamos olhares — uns quantos, bem medidos —
e sorrisos contidos, porém definidos.
No fim do programa, puxei um assunto ameno,
com aquele ar de quem sabe — mas sem ser obsceno.

Ditei meu número com voz tranquila,
sabendo que charme, às vezes, se destila.
Ela anotou com graça e educação,
mas meu instinto disse: “Calma, é só educação…”

Professora de piano, num tom encantador,
visivelmente culta, delicada e de valor.
Mas não me iludo com ares ou compostura —
tenho mestrado em música e alma de partitura.

Mesmo assim, achei improvável, quase utópico,
que me chamasse — parecia tópico
de crônica suave, dessas que se esquecem…
até que, meses depois, mensagens aparecem.

Agora, com o jantar marcado,
o impossível virou só enfeite exagerado.
E eu, que achava o conto encerrado,
me vejo entre um blaser e um verso engomado.

Se vai dar em sonata, prelúdio ou silêncio,
não sei — por ora, só penso no início.
O resto, deixo pra pauta futura:
há encontros que merecem sua própria partitura.

domingo, 11 de maio de 2025

ex cineribus

ex cineribus

trinta anos de álcool
todo dia
não era vício
era liturgia

falava merda
fazia pior
quem via de fora
achava um show de horror
por dentro era só um poeta
caindo de copo em copo
no palco da sarjeta 

esposa avisava
escola notava
e eu?
só brindava

aí procurei
um addictologue
(um tal de especialista em dar nome bonito
pra quem já se afoga no próprio grito)
dois addictologues
uns psiquiatras
remédio pra depressão,
mais remédio pra aguentar o remédio da depressão

era álcool desde pequeno
pra curar o existencial veneno
pra suportar a introspecção
de quem nasce perguntando
e morre sem explicação

perdi o emprego
perdi o sossego
e a mulher que era vida
me botou na corrida

filho no colo
e eu zumbi
voz de bêbado
sem estar bêbado
caminho torto
olhar sem fim

fui parar na terra natal
passagens pagas por um amigo-irmão,
um porto seguro em meio ao tufão,
um tio legal
e uma tia torta
que era reta no final


a mala com remédio sumiu
milagre:
falei direito
andei direito
ri de novo
e quase virei sujeito

comecei um balanço
desses que doem sem ser dança
um inventário de essência
com pitadas de esperança

mas o corpo, esse traidor
começou a cair de novo
pernas em greve
língua em slow motion
cerebelo no chão

hospital:
quatro meses
uma estação 
um inverno no coração

aí, do nada
quatro dias de alta
veio a última cicatriz
meu filho mais velho
caiu, enfim, do alto do que já não se diz
não se matou — nem quis
um pouco de paz
nos braços sutis
dos opiáceos e ansiolíticos
que a vida oferece
a quem já não crê na mesmice
de tanta dor que a vida quis
(12 anos antes, já o tinham matado
quando mataram sua mãe atriz)

recaída?
não.
já tinha caído demais.

a perda era menos que o perder
porque perder mesmo
foi vê-lo sofrer

e eu?
fênix.
não dessas de filme
nem tatuada no ombro
mas dessas que riem
com um copo d’água na mão
e um poema no escombro

sereno
resolvido
alegre
fênix,
com f minúsculo,
porque a dor já é grande demais

Deusas existem

Deusas existem


Nunca acreditei em deuses, céus ou paraísos,

Mas vi nos olhos dela os mais belos avisos.

Um dia, sem milagre, sem fé, sem nobreza,

Cruzei meu caminho com o de uma deusa.


O mundo não tem dono, e isso eu confesso,

Mas bastou o toque dela pra eu sentir o universo.

Não preciso de deus, nem de sua dureza,

Pois vi nascer o sagrado no corpo de uma deusa.

A Farmacêutica

A Farmacêutica 

Conheceram-se no verão,
entre tarjas pretas e tarjas de dor.
Ele entrou sem o filho — só a solidão
e uma receita com sobrenome de amor.

Ela leu, franziu a testa:
“Você é o pai do Klayton Kleber?” — perguntou, surpresa.
Ele assentiu, com a alma em festa
de luto. Contou a perda com voz indefesa.

Desde então, cada ida era mais leve.
Ela sorria como quem saboreia poesia,
falava doce, o olhar que descreve
o que a bula da vida nunca diria.

No fim do inverno, não tinha o remédio.
Ela disse, simples: “Chega amanhã.”
Ponto final, sem mistério.
E foi aí que ele, com jeito de quem já é fã,

perguntou: “Vocês entregam?” — com calma.
Ela sorriu, um tanto perigosa:
“Não… mas eu posso levar, se não der trauma.
Na hora do almoço. Prometo: sem demora.”

Ele hesitou. “A cuidadora vem na sexta.”
Mas ela insistiu — com aquela voz mel
e um gesto sutil de mulher modesta
que sabe o poder que tem na pele e no pincel.

No dia seguinte, ela chegou: discreta, gostosa,
casaco leve, perfume sutil, batom claro.
Entregou o remédio como quem entrega uma rosa
e foi embora, deixando no ar algo raro.

Dois meses se passaram. Já era primavera.
Outro remédio em falta — coincidência? Talvez.
Dessa vez, ele aceitou sem espera.
Ela chegou com legging e batom vermelho em altivez.

Ele convidou: “Quer um chá, ou uma água?”
Ela sorriu com malícia: “Depois.”
Entrou direto, sem nenhuma frágua,
agarrou o velho como quem não tem depois.

Beijo quente, língua que dança.
Foram pro quarto, onde o mundo se apequena.
Ela montou como quem já lança
raios de tesão por cada pequena veia serena.

Transaram selvagemente, sem pudor nem lerdeza.
E no clímax — ah, no clímax! — ela esguichou,
como fonte que há anos guarda a represa
e, enfim, com prazer, se libertou.

Ela foi embora dizendo que ligaria.
Ligou — número oculto, voz quente.
No dia seguinte, mais prazer, mais energia.
Mas sem conversa, só corpo, só urgente.

No terceiro dia, ele saía do banho,
preparando-se pra fisioterapia.
Ela chegou, molhada de desejo estranho
e depois do gozo… veio a revelia:

“Estou em união estável há seis anos,
mas contigo eu gozei como nunca sonhei.
Três dias contigo valem mais que tantos planos…
decidi: vou me separar, já falei.”

Ele, experiente, olhou fundo, com calma,
e disse o que só um velho esperto diz com a alma:

“Você tem trinta e seis, e está pensando com o útero, flor.
Não vale a pena largar anos de história
por três dias de orgasmos com um velho handicapé, por favor.”

“Foi lindo, foi louco, foi bom!
Mas não confunda tesão com salvação.
Ensina seu homem, não joga tudo no chão.
Guarda o que foi nosso como um sonho bom.”

Ela chorou. Ligou por três dias, aflita.
Depois, silêncio.
E ele, precavido,
mudou de farmácia.

Porque até os velhos com andador
sabem quando a paixão
vem sem posologia
e sem controle de dose.