As escolhas de Simone
Simone é goiana. Tem 48 anos, mas nem parece: corpinho de 35, rostinho também. E ideias que pararam em 2020, num grupo de WhatsApp que virou fonte de sabedoria universal. Esteticista experiente, com prática de sobra — sem diploma, mas com autoridade conquistada entre escovas progressivas e desabafos de clientes fiéis no salão Karmel, no Jardim Curitiba, em Goiânia.
Bolsonarista de raiz. Fez estoque de cloroquina como quem prepara kit contra a gripe espanhola. Acredita que o mito é honesto, perseguido, mártir sob toga alheia. Que o Brasil vive sob a ditadura do Xandão. E que chama o atual presidente, claro, de “molusco”. Mas não podemos julgá-la. Simone não teve acesso ao estudo como deveria, e prefere confiar nos vídeos de três minutos com trilha épica e dublagem fanhosa do Zap do que em fatos, contextos ou evidências. E sejamos francos: tem muita gente, com mestrado e acesso à biblioteca digital, presa no mesmo delírio coletivo de fakes e convicção.
Simone escuta sertanejo. Mas daqueles que passam a léguas de distância do rancho fundo — aquele que fica bem pra lá do fim do mundo. O dela é o de balada, da Hilux com som estourado, dos amores líquidos com refrão grudento. Sertanejo gourmet, com pitada de autotune e dor reciclável. Ainda assim, chora. Porque todo mundo tem seu tipo de saudade.
Frequentava, de vez em quando, a igreja Renovada Sangue & Fogo — nome de seita escatológica ou de marca de carvão ungido. O tipo de templo onde se amaldiçoa a esquerda, o feminismo, a arte moderna e a cor vermelha.
Foi para fugir do comunismo — essa entidade mitológica que assombra grupos de Zap e manchetes da Brasil Paralelo — que Simone e o marido decidiram sair do Brasil. Tentaram a “maior democracia do mundo”, claro. Sonhavam em apertar a mão do Pateta, e talvez uma selfie com a Estátua da Liberdade legendada: “livres, enfim”.
Não conseguiram. Resolveram ir para o “velho mundo” — será que, se cherokees, incas ou tupis-guaranis tivessem cruzado o marzão doido antes do italiano que servia a reis da Espanha e “descoberto” a Europa, chamariam de “novo mundo”? — não sei por que cargas d’água não foram para a Guiana Brasileira, na Península Ibérica. Terra tomada por brasileiros crentes, bolsonaristas, e cheia de pão barato, vinho em promoção e aluguel inflacionado por Airbnbs e ex-pentecostais. Escolheram a França.
Logo a França! A pátria do sindicalismo, da greve institucionalizada, do Macron — que pra Simone é socialista, globalista e suspeito. Foram parar em Ivry, no subúrbio sul de Paris. Sete quilômetros da praça da República e a um abismo simbólico da torre Eiffel, que Simone viu uma vez e achou “uma antena grande demais” — e nunca mais voltou a Paris. Tem medo do metrô. Medo de ser assaltada. Medo do comunismo, sempre ele.
Sem documentos e sem francês, conseguiu trabalho no By DDOSKY, um salão afro da vizinhança onde ninguém é declarado, mas todo mundo se vira. Simone, branca, de cabelo liso cor de jabuticaba, trançava como veterana. Foi aceita, porque em cabelo — como na vida — vale mais a destreza que a certidão.
Come coxinha no Copacabana Burger (em Ivry!) e bebe Brahma. A coxinha, tudo bem. Mas Brahma, na França? Matar saudades da terrinha com coxinha, eu entendo — mas com cerveja da AMBEV?
Só anda com brasileiros. O francês? Nada além do “merci” murmurado, como se tivesse vergonha de pronunciar vogal nasal e medo da língua obscena e encantatória de Mallarmé. Vive em Ivry como se fosse Goiânia — só que com metrô (que ela não usa).
Dois anos depois do desembarque heróico em Orly, o marido — são-paulino, bebedor de Brahma, distribuidor ocasional de tabefe — sempre que exagerava na cerveja e o tricolor perdia — arranjou uma senegalesa elegante, poliglota e de olhar fatal. Foi embora. Agora ameaça levar a filha.
E Simone? Simone resiste. Entre escovas, memes de indignação patriótica e a certeza inabalável de que o mito vai voltar — mais forte, mais honesto, mais blindado contra o comunismo imaginário.
Simone… será que não dava pra errar um pouco menos?
Mas falar isso pra ela é perigoso. Pode ser que ache que sou comunista. Ou pior: um agente infiltrado da revista Fórum.