terça-feira, 19 de maio de 2015

"Carta Aberta"

Bondy, 18 de maio de 2015

“Senhor, sois justo e misericordioso. Afastai de nós, tudo que esteja nos prejudicando e retardando”.

Trecho de uma oração que minha falecida mãe costumava fazer para mim e meus irmãos na hora de dormir, depois de entoar belas canções. Não durou muito tempo, pois ainda pequeno, por volta dos 10 anos, deixei de acreditar em muitas coisas para dar espaço às minhas descobertas e desenvolver minhas próprias crenças. Já não havia lugar para as orações.

Gostaria de poder te falar tudo isso pessoalmente e dar-te um forte abraço, mas você mora muito longe, não tenho condições, e o Dr. Spock até hoje não me emprestou o teletransportador dele... vai ter que ser por carta, e como pelos correios demora muito, vai por aqui mesmo.

Durante muito tempo cultivei mágoas e até um certo rancor, mas nunca pelo fato de você ter “tomado rumo”. Lembro-me muito bem de tentar consolar minha mãe – ela bem mais velha do que eu, já tinha seus 29! – que sofria, não sozinha, pois éramos três, os filhos. Eu dizia que iríamos conseguir, que era melhor assim. E, afinal, como você me disse naquele dia, “a partir dali eu era o homem da casa”. Mas não. Eu era apenas um menino. Sim, muito esperto, mas extremamente sensível. Acabei fracassando nessa missão. Não basta astucia para assumir um papel de pai. É preciso bagagem – y otras cositas más –, que consegui acumular graças à sua ausência.

Não posso deixar de lembrar que houveram momentos bons enquanto você esteve presente. E muitos! Soltávamos papagaio, comíamos pipoca assistindo Os Trapalhões, escutávamos Os Mutantes, Santana e Led Zeppelin... e você contava umas historias malucas! Acontece que a coisa começou a desandar. O melhor a se fazer, naquelas circunstâncias, era mesmo partir. Não vejo sua ausência como um abandono. Por mais que você talvez não tenha consciência disso, acredito – ou prefiro acreditar? – que, considerando a dificuldade de estabilidade sócio-emocional que visivelmente atormentava sua existência, o que poderia pôr em risco a nossa, você optou pelo correto, que é educar e proteger seus filhos.

Hoje – e já faz um tempo – a mágoa e o rancor deram lugar à compreensão e à gratidão.

A estratégia da ausência deu certo, aliada ao espirito de leoa da minha mãe, à cultura do avô barbudo, ao suporte dos tios... e aos livros. Você pode ficar orgulhoso do seu primogênito! Depois de muita bagagem nas costas, consegui tornar-me um sujeito ordinário. É verdade que não tenho bens materiais... por enquanto nada! Mas tenho o maior tesouro do mundo, que são minha esposa e meus três filhos. Minha família. E, se esse é meu sonho mais genuíno, meu principal objetivo, é também em parte graças à sua ausência.

Você cometeu seus erros sim, mas ao meu ver você fez o melhor que pôde, da melhor forma possível.

Agora acho que é hora de dar exemplo e não deixar os três filhos e sete netos na mão. Você foi corajoso ao enfrentar todos os que não entenderam a nobreza do seu afastamento. Não seja covarde. Não merecemos mais essa na nossa bagagem que já está transbordando. Ainda quero muito te encontrar e dar aquele abraço apertado. Quem sabe no fim do ano?